Página:Contos Populares Portuguezes colligidos por F. Adolpho Coelho.pdf/32

Wikisource, a biblioteca livre

XXVIII

hum forno de cal, a que naquelle tempo lançara o fogo, lhe disse, que quando, na hora certa de hum dia determinado, mandasse hum Pagem da Rainha a saber se fizera o que lhe ordenara, o lançasse dentro no ardente forno, porque assim convinha a seu Real serviço; chegado o prescripto dia, à hora sinalada mandou ElRey o innocente Pagem com o recado fingido ao lugar do incendio, em que determinava, que se queimasse a innocencia, e Deos dispunha que ardesse a culpa; obedeceo elle com diligencia prompta, e como tinha por inalteravel devoção entrar nas Igrejas, quando ouvia fazer os sinaes ao levantar da Hostia consagrada, ouvindo-os no Convento de S. Francisco da Ponte, que estava no caminho, entrou nelle e ouvio hũa, e outra Missa, e assistindo no exercicio de sua devoção, pôz Deos embargos à sentença de sua morte; dispondo o Senhor que se consumisse no fogo quem lhe procurara o incendio, porque quem venera a saudavel Hostia, logra immunidades na vida, e não só não padece o dano que se lhe prepara, mas faz que elle recaya em quem lho solicita; bastou sonhar Gedeão com o Pão que era figura da Eucharistia para debellar os exercitos de Madian; antes de sonhar com o Sacramento, teve por duvidosa a batalha, tanto que ouvio o misterio, deu por conseguida a victoria. Estando ElRey cuidadoso do successo, e desejando saber, se o fogo tinha desvanecido em fumo o seu presumido aggravo, chamou o outro Pagem, que atrevidamente tinha infamado, na Magestade mais decorosa, a mais innocente castidade, e lhe disse que fosse saber, se se tinha dado à execução a sua ordem; chegou elle ao lugar que se destinara para o suplicio do outro, que estava na Igreja ouvindo Missa, e entendendo o executor da morte, que àquelle mandava ElRey tirar a vida, lançando-o precipitadamentre entre as flamas, se reduzio justissimamente em cinzas, porque a divina justiça faz que pereça o culpado, no laço que se arma para o innocente: no patibulo que Amão levantou para Mardocheo, não morreo Mardocheo, e padeceo Amão.

Acabadas as Missas, se foy o devoto innocente para o forno, onde o delinquente estava consumido, e dando o recado de ElRey, lhe trouxe por resposta, que a sua ordem se dera á execução, etc.» Historia da vida, morte, milagres, canonização, e trasladação de Santa Izabel, sexta Rainha de Portugal. Escripta por D. Fernando Correa de Lacerda. Lisboa Occidental. 1735. 4.º p. 47-50.

Agora a versão metrificada de Affonso X:


Non pode prender nunca morte vergonhosa
Aquelle que guarda a virgen groriosa.

E d'aquest'aveno gran temp'á ja passado,
Que ouv'en Tolosa un conde mui preçado,