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— É porque te botam coisa no vinho, que te faz dormir; finge que bebes, mas deita o vinho fóra, para sentires o que se passa de noite no palacio.

Acabado os tres dias ella voltou pela estrada aberta no mar, entrou no palacio; comeu, ceiou, e fingiu que bebia. Quando se deitou já não teve o somno tão pesado, e sentiu que alguem se deitava ao pé d’ella. Ficou bastante assustada, e deixou-se ficar muito quieta; quando estava tudo muito socegado, accendeu uma vella para ver o que era. Era um principe muito formoso; inclinou-se para vel-o melhor, e caiu-lhe um pingo de cera no rosto. Elle então acordou:

— Ah cruel; que só faltavam oito dias para quebrar o meu encantamento. Agora para me poder desencantar é preciso que tu soffras grandes trabalhos por mim, sem nunca te queixares. Toma lá esta carapinha; quando te vires em alguma afflicção de que te não poderes livrar, diz:

— Valha-me aqui quem me deu esta carapinha.

E n’este instante desappareceu o principe e o palacio, e a rapariga achou-se sósinha no meio de um descampado. Ia passando um rancho de pretas, que lhe disseram muitas chufas, e lhe arrepellaram os cabellos. A rapariga soffreu tudo sem dizer nada. Passou um jornaleiro e ella propoz-lhe trocar os seus vestidos cravejados de brilhantes pelas roupas do pobre homem, e assim já com outro traje foi-se offerecer para hortelão da casa do rei. A rainha começou a gostar do hortelão, porque tinha uma cara bonita, mas como elle não lhe correspondia foi fazer queixa ao rei, que era precise mandal-o matar porque tinha commettido um atrevimento muito feio. O rei mandou metter a tormentos o hortelão para confessar o que fizera, mas elle soffreu tudo negando sempre. A rainha teimava que queria que se enforcasse; ia elle já para a forca, e lembrou-se de dizer:

— Valha-me aqui quem me deu esta carapinha.