Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/21

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indignação, quando visse começar a usar-se libré, arranjar, ferrabrás, marau, freire, grifa, genebra, bilhete, betarraba, besonha, febre (adj.), petigris, poteia, poterna, abreuvar, assembleia, petimetre, grelo, gaio (alegre), gage, greu, moéla, gredelém, etc., porque todas essas palavras eram puras francesias; hoje... são portuguesas. ¿Quem sabe o que succederá aos mais intoleráveis gallicismos de hoje?

E possível que os alludidos neologóphobos abranjam na sua phobia o registo, que eu faço, de muitos centenares de termos de gíria, como estranhos á linguagem othodoxa e grave dos pontífices literários. Aos taes bastará ponderar que não há pontífice literário que inflija excommunhão maior ao vocabulário da gíria, porque está relacionado por muitos vínculos á linguagem geral, offerece por vezes o facto notável de derivações erudítas e tanto se abeira amiúde da linguagem popular, que se torna diffícil traçar a divisória.

Estão neste caso as cangalhas (óculos), catrafilar (prender), estalo (bofetada), esticar (morrer), massa (dinheiro), penante (chapéu), pireza (fuga), refilar (reagir), tóla (cabeça), valente (alavanca para arrombar), etc., etc.

Accrescentando-se que os diccionaristas e philólogos, como Bluteau, Diez, Cornu, Schuchardt, Michel, e muitos outros, têm dado ao calão ou gíria a importância que os ingênuos poderão negar-lhe, nada mais opporei aos reparos, com que, a propósito de gíria, foram recebidas as primeiras fôlhas desta obra por um ou outro crítico inoffensivo e anónymo.

 

Não se limitam os meus estudos e investigações á linguagem escrita e falada no continente português: — Explorei também a linguagem popular dos archipélagos açoreano e madeirense; e, detendo a attenção na linguagem vulgar entre os Portugueses das nossas possessões ultramarinas, realizei larga colheita de expressões locaes, concernentes a usos, costumes, administração pública, vestuário, ceremónias e crenças indigenas de Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor.

Mas o português não é sómente a língua de Portugal e das suas possessões: fala-o uma grande nação, que se emancipou da nossa velha soberania, mas que não enjeitou o idioma, com que levámos a civilização europeia aos sertões da América do Sul.

Succede porém que o português do Brasil não é precisamente o português europeu: recebeu numerosos termos da população indígena, e o tupi entrou como elemento constituinte no organismo da moderna linguagem brasileira. Ora, desde que um diccionário é destinado a todos os povos que falam português, não póde prescindir dos termos brasílicos, que são inseparáveis da linguagem portuguesa, praticada além do Atlântico.

Consultei portanto vocabulários brasileiros; li poétas, romancistas, críticos e grammáticos daquella nação; falei pessoalmente com muitos brasileiros, e, de todas estas diligências resultou para êste Diccionário o registo de mais de sete mil brasileirismos, que nunca haviam entrado em diccionários da língua portuguesa.

Note-se entretanto: nem todos os termos, a que eu apponho a nota de brasileirismos, e que como taes são considerados pelos mais conspícuos vocabularistas, como Beaurepaire-Rohan, provieram dos tupís ou fôram criados por brasileiros. Muitos dêlles são velhos portuguesismos, que partiram daqui com os descobridores e colonizadores das terras de Santa-Cruz, e que lá vivem e prosperam ainda, sendo aqui já esquecidos ou mortos. Assim é que a conjunção si que, no português, é hôje privativa do Brasil foi usada por clássicos nossos; usou-a, por exemplo, Garcia da Orta, nos seus Collóquios. O vocábulo perendengues, se não partiu de cá, foi de lá recebido há muito e entrou no português dos mestres; usou-o Filinto, pelo menos. A geriza, o agir, o faneco (pedaço de pão), a alfafa ou alfaifa, o guaiar, etc., são bons e velhos vocábulos portugueses, de que nós nos esquecêmos quási, mas que os Brasileiros, para vergonha nossa, sabem alimentar e prezar. Sob êste ponto de vista, a inscripção de muitos vocábulos brasileiros equivale, creio eu,