tempo grande philosopho, grande poeta e grande crítico; a terceira he a epoca em que appareceu a Viagem ao Oriente, quando havia uma nescia prevenção contra os chamados classicos, e Mr. de Lamartine quiz sacrificar ao idolo do dia uma víctima pingue. — Que a Dido historica seja mais santa e respeitavel, ninguem o duvída; mas que seja mais bella poeticamente e mais pathetica, he o que negará quem tiver meditado na natureza humana, quem tiver estudado os poetas, principalmente os tragicos, em cuja alçada entra o pathetico mais a miude. «Quando eu nada mais devesse a Euripides, nos diz Racine, que a idéa do caracter de Phedra, poderia affirmar que lhe devo o que talvez de mais razoavel expuz no theatro. Não me assombra que este caracter fôsse do mais feliz exito naquelle tempo, e que ainda sahisse tam bem neste seculo, poisque tem quantas qualidades requer Aristoteles nos heroes da tragedia, e que sam proprias para excitar a compaixão e o terror. Na verdade, Phedra nem he de todo culpada, nem de todo innocente.» — E eis-aqui um dos mais sublimes genios da França, modêlo em seu genero, achando bello e pathetico o caracter de Phedra, incomparavelmente mais culpada que Dido; a qual, generosa e benéfica e heroica, só contra si peccou e contra seus escrupulos, mas não calumniou o enteado, concorrendo para a sua morte. O bello poetico nem sempre he o bello moral: se o fôsse, não seriam supportaveis os melhores trechos do Dante, muitos de Homero, de Sophocles, de Shakespeare, de Corneille, de Voltaire, de Goethe, e de outros ingenhos desta primeira plana. — He para notar que Mr. de Lamartine, fazendo esta crítica do ridicule Enée, considere bom unicamente l'Anna soror, le magnifique adieu et l'immortelle imprécation qui suivent. O Anna soror do crítico he difficil de saber ao que se reporta: no comêço do livro ha um discurso que principia por estas palavras, mas não he seguido de le magnifique adieu, nem de l'immortelle imprécation; e, no caso de referir-se ao que fica antes da imprécação, a qual abrange do verso 590 a 629, então lá não se trata de Anna soror, trata-se da partida de Enéas ao romper do dia. Isto me convence da pressa com que foi feita a crítica, talvez não tendo á mão M. de Lamartine um exemplar da Eneida para refrescar a sua lembrança. Não achar conforme á natureza o andamento dos amores de Dido em Virgilio, he opinião singular do nosso illustre contemporaneo: Mr. Tissot mesmo, com quantos tem censurado um ou outro lugar do episodio, não se atreve a involver na censura o episodio inteiro. Santo Agustinho, genio superior, sendo bem iniciado e experiente em materias amatorias, com especialidade se deleitava lendo este livro IV. Aqui dou, na traducção de Francisco Manuel, o que delle escreveu o autor dos Martyres, do monumento maior da literatura franceza nestos[1] ultimos tempos: «Pelas ribas, Que o vate descantou de immortal fama, Com a Eneida nas mãos ia Agustinho Ao lago Averno, á gruta da Cuméa, A Elysios
- ↑ É um possível erro tipográfico: nestes.