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Ah! Porque desgraçada contingencia
Á hispida aresta saxea aspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adhesão, não prendi minha existencia?!

Porque Jehovah, maior do que Laplace
Não fez cahir o tumulo de Plinio
Por sobre todo o meu raciocinio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daquelles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Porque me deu consciencia dos meus actos
Para eu me arrepender de todos elles?!

Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabuchodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na mangedoura com os cavallos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser abôrto!
Sahir de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pae que é morto!

E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martyrios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarías!