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Reinaldo Nicácio da Silva Júnior, Christina Helena da Motta Barboza


No dia 29 de maio de 1919, uma expedição do Observatório Nacional (ON) enviada a Sobral, no interior do Ceará, registrou, em uma série de fotografias astronômicas, o eclipse total do Sol. Trata-se de uma rica coleção de fotografias, a maior parte dela inédita, disponíveis nas placas de vidro em que originalmente foram produzidas e reveladas ou reproduzidas, todas depositadas na Biblioteca do ON. É dessas fotos que este artigo se ocupará.

Não custa lembrar que a expedição inglesa instalada em Sobral para a observação desse mesmo fenômeno obteve suas próprias fotografias, as quais foram utilizadas na comprovação da teoria da relatividade geral de Einstein. O eclipse de Sobral, que em 2019 completou cem anos, ganhou visibilidade pública e atenção especial dos astrônomos e historiadores das ciências principalmente por causa da expedição inglesa. No entanto, a coleção de placas de vidro da expedição do ON tem grande importância científica e histórica, entre outras razões porque foram as primeiras fotografias bem-sucedidas da coroa solar obtidas por astrônomos brasileiros.

A aplicação científica da fotografia na astronomia

Quase imediatamente após o anúncio da invenção da fotografia, em 1839, e durante todo o século XIX, cientistas de diversas áreas do conhecimento investiram em pesquisas para compreender e se apropriar dessa revolucionária forma de produção de imagens, contribuindo assim para o desenvolvimento de novos materiais, equipamentos e processos fotográficos. A própria origem da fotografia resulta da convergência entre conhecimentos e práticas nos campos da óptica (como a câmara escura) e da química (na busca de substâncias, de um lado sensíveis à luz, e de outro, capazes de revelar e fixar a imagem formada, como o vapor de mercúrio e o cloreto de sódio, empregados por Daguerre) (Peres, 2014; Rouillé, 2009).

Os astrônomos logo perceberam o potencial da nova ferramenta (Lankford, 1984; Thomas, 1998). O astrônomo inglês John Herschel (1792-1871), por exemplo, realizou diversos experimentos com a câmara escura e depois com a fotografia, vários deles em colaboração com William Fox Talbot (1800-1877), contemporâneo de Daguerre e também identificado pela historiografia como inventor da fotografia – ao contrário de Hercule Florence (1804-1879), raramente citado (Turazzi, 2008). Em 1854, Herschel encomendou a Warren De la Rue (1815-1889) o projeto de um instrumento capaz de fotografar o Sol, o qual resultaria no desenvolvimento do chamado "foto-heliógrafo", instalado no Observatório de Kew e utilizado em um programa de monitoramento das manchas solares.

Entre os desafios iniciais a vencer para que a fotogarfia pudesse ser aplicada à astronomia, destacava-se o longo tempo de exposição à luz, que impunha a naecessidade de compensar o movimento de rotação da Terra (Thomas, 1998; Peres, 2014). De todo modo, aquela que é considerada a primeira fotografia de um objeto celeste – um daguerreótipo da superfície da Lua – foi obtida já em março de 1840 pelo químico norte-americano John Draper (1811-1882). No final dessa mesma década, no então recém-criado Observatório de Harvard, William Bond (1789-1859) e George Philips Bond (1825-1865), respectivamente pai e filho, em colaboração com o fotógrafo John Whipple (1822-1891) e com o auxílio do maior

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