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História e memória de vidro

telescópio refrator até então instalado, obtiveram uma série de fotografias da Lua bastante nítidas, premiadas na Exposição Universal de Londres em 1851.

O Sol foi outro corpo celeste que logo atraiu a atenção dos fotógrafos. E ao longo da segunda metade do século XIX, cada vez mais astrônomos queriam fotografá-lo. Fotografar a coroa solar constituiu um desafio especial até pelo menos o início do século XX. Note-se que apenas durante um eclipse total do Sol, fenômeno periódico, porém visível cada vez em uma estreita faixa da superfície da Terra, a coroa solar podia ser observada e fotografada. Nesse sentido, as dificuldades técnicas que se apresentavam aos astrônomos amadores e profissionais não devem ser desprezadas. Dentre elas destacam-se a duração da totalidade do eclipse, que pode ser muito curta, da ordem de poucos minutos, e a necessidade de transporte, instalação e ajuste dos telescópios, com suas lentes de vidro e seus mecanismos de relojoaria, no campo de observação do eclipse, nem sempre de fácil acesso e com boa infraestrutura (Pang, 2002). Empregando o foto-heliógrafo por ele construído, De la Rue observou o eclipse total do Sol de 18 de julho de 1860 na Espanha. Durante muito tempo consideradas pioneiras, suas fotografias da coroa solar constituem um marco na história da fotografia astronômica.

Outro marco importante na história da aplicação da fotografia à astronomia foi o trânsito de Vênus pelo disco do Sol, em 9 de dezembro de 1874 – como indicativo de que a noção de "progresso" não se aplica a cronologias do desenvolvimento científico de modo inequívoco. Esse fenômeno astronômico, que só ocorre duas vezes a cada século, na época era considerado decisivo para o cálculo da paralaxe solar, utilizada para determinar a distância entre a Terra e o Sol. Para realizar as medições necessárias, vários países optaram pelo uso da fotografia no registro dos contatos entre Vênus e o disco do Sol. No entanto, apesar das muitas expedições astronômicas organizadas, os resultados científicos obtidos com a fotografia foram avaliados como pífios (Lankford, 1984). Em consequência, no congresso internacional organizado para coordenar as observações do trânsito de Vênus seguinte, em 6 de dezembro de 1882, foi decidido que não se utilizaria a fotografia. De fato, apenas os astrônomos norte-americanos o fizeram.

A possibilidade de medição das imagens fotográficas sem dúvida era uma questão central para os astrônomos – assim como para os pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como a física, a botânica e a própria medicina. Segundo diversos autores (Daston, Galison, 1992; Daston, 2017; Latour, 2000; Rouillé, 2009), a busca pela quantificação (no caso da fotografia astronômica, expressa não só pela nitidez e profusão de detalhes, mas por tempo de exposição, distância focal e, sobretudo, produção de séries) encontra-se no cerne do do surgimento do conceito de "objetividade científica" em meados do século XIX. Igualmente essencial nesse processo histórico foi a convicção, firmada desde então até pelo menos o período entreguerras, de que as mais variadas formas de subjetividade, da admissão do compromisso com dada teoria até a simples mediação do observador, comprometem a "verdade" que deve ser perseguida na produção do conhecimento científico. Nesse sentido, a objetividade científica da segunda metade o século XIX pode ser traduzida como "objetividade mecânica" (Daston, Galison, 1992). Como sintetiza o fotógrafo e historiador da fotografia André Rouillé (2009, p.109), "Funcionando ela própria conforme princípios científicos, a fotografia vai contribuir para modernizar o conheciment; em particular o saber científico. Modernizar é, essencialmente, abolir qualquer subjetividade

v.27, n.3, jul,-set. 2020, p.983-1000

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