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NOVELLAS EXTRAORDINARIAS

Entretanto o gato foi-se curando a pouco e pouco; a orbita do olho vasado apresentava sempre um aspecto repugnante, mas parecia não lhe fazer soffrer. Como era natural, Plutão fugia agora de mim com extremo terror. Ao principio, aquella antipathia evidente da parte de uma creatura que me amava com tanta dedicação, affligiu-me um pouco, porque na minha alma havia ainda um resto da antiga doçura. Mas a irritação succedeu depressa áquelle sentimento. E então, appareceu, para minha ruina final e irrevogavel, o espirito da Perversidade.

A philosophia não se preoccupa com esta tendencia; comtudo (tão certo como a minha alma existir) creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano, uma das primeiras faculdades ou sentimentos indivisiveis, que dirigem o caracter do homem. Não ha ninguem que não se tenha surprendido cem vezes a com. metter uma acção tola ou vil unicamente por saber que não a devia commetter. Todos nos temos, não obstante a excellencia do nosso raciocinio, uma inclinação perpetua para violar a lei, unica e simplesmente por ser a lei. Este espirito de perversidade, digo, veiu causar a minha queda final. Foi este desejo intenso, insondavel, que a alma sente ás vezes de se torturar a si propria; de violentar a sua natureza; de fazer o mal, só pelo amor do mal, que me levou a continuar e por fim a consummar o supplicio do pobre gato inoffensivo.

Uma manhã, a sangue frio, atei-lhe uma corda ao pescoço com um nó corredio, e enforquei-o no ramo de uma arvore.

Enforquei-o com os olhos arrasados de lagrimas e o remorso mais pungente no coração. Enforquei-o por saber que me tinha amado e por conhecer que não me déra a menor razão de queixa. Enforquei-o por sentir que,