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O GATO PRETO
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procedendo assim, praticava um peccado; um peccado mortal, que compromettia a minha alma immortal, a ponto de a lançar (se tal fosse possivel) para além da misericordia do Deus Todo Misericordioso.

Na noite seguinte ao dia em que commetti aquella acção cruel, accordei em sobresalto ao grito de: fogo!

As cortinas do meu leite ardiam já e toda a casa estava em chammas. A destruição foi completa. Apenas escapavamos ao incendio eu, minha mulher e um creado. Toda a nossa fortuna ficou submergida.

O meu desespero foi completo.

Não procuro estabelecer ligação de causa e de effeito entre a atrocidade e o desastre; sou superior a semelhante fraqueza. Mas faço uma narração de factos, não devo omittir nenhum.

No dia seguinte ao incendio, visitei as ruinas. As paredes tinham cahido todas, excepto uma, que era justamente um tabique interior, pouco espesso, situado quasi no meio da casa e contra o qual se encostava a cabeceira da minha cama. Alli a alvenaria tinha resistido em grande parte á acção do fogo; facto que attribui a ter sido recentemente concertada. Comtudo havia-se juntado á roda d'aquella parede uma chusma de gente. Muitas pessoas pareciam examinar, com minuciosa e viva attenção, uma pequena parte d'ella. As palavras: Estranho! Singular! e outras exclamações identicas, excitaram a minha curiosidade. Approximei-me e vi, semelhante a um baixo relevo esculpido na parede branca, a figura de um gato gigantesco, com uma corda enrolada ao pescoço. A imagem estava representada com uma exactidão verdadeiramente maravilhosa.

Primeiro, ao ver aquella apparição, (porque não podia classificar aquillo d'outra fórma) o meu espanto e terror fôram extremos. Mas emfim a reflexão acudiu-me. Lem