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BERENICE
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numero infinito dos objectos do mundo exterior, só os dentes me preoccupavam. Desejava-os freneticamente! Todos os outros assumptos, todos os interesses diversos foram supplantados por aquella unica contemplação. Elles, só elles estavam presentes aos olhos do meu espirito, e a sua individualidade exclusiva tornou-se a essencia da minha vida intellectual. Via-os a todas as horas e a todos os instantes. Estudava-lhes o caracter. Observava-lhes os signaes particulares. Meditava sobre a sua conformação. Reflectia na alteração da sua natureza. Estremecia, attribuindo-lhes na imaginação uma faculdade de sentimento, de sensação e uma propriedade de expressão moral, mesmo sem o auxilio dos labios. Dizia-se, com razão, de mademoiselle de Sallé, que todos os seus passos eram sentimentos. De Berenice cria eu intimamente que todos os dentes eram idéas. Idéas! ah! eis o pensamento absurdo que me perdeu. Idéas ah! ahi está a razão pela qual eu os invejava tão loucamente! Sentia que só a sua posse me podia restituir a paz e a razão.

E a noite desceu assim sobre mim! Vieram as trevas, installaram-se, e tornaram a fugir! E um dia novo appareceu! E em redor de mim amontoaram-se as sombras de uma segunda noite; e eu sempre immovel n'aquelle quarto solitario, sempre assentado, sempre engolfado na minha meditação! E o phantasma dos dentes mantinha sempre a sua influencia terrivel, a ponto de fluctuar incessantemente aqui e acolá, com a mais espantosa nitidez, ora através da luz, ora através das trevas do aposento. Emfim, no meio dos meus sonhos, retumbou espantoso um grito de horror, ao qual succedeu, depois de uma pausa, um ruido de vozes desoladas, entrecortadas de gemidos surdos, de suspiros, de luto e de dôr. Levantei-me e, abrindo uma das portas da bibliohteca, en-