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BERENICE
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que lhe tinham amarrado aos queixos, desatára-se não sei como. Os labios lividos torciam-se n'um especie de sorriso, e, através da sua moldura lugubre, os dentes de Berenice, brancos, luzidios, terríveis, olhavam-me ainda com uma realidade viva! Desviei-me convulsivamente do leito, e, sem pronunciar uma palavra, sahi, correndo como um maniaco, d'aquelle quarto de mysterio, de horror e de morte.

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Achei-me outra vez na bibliotheca, sentado, só. Era meia-noite. Parecia-me ter sahido de um sonho confuso e agitado. Sabia que Berenice fôra enterrada depois do sol posto; mas não guardava nenhuma lembrança positivo ou definida do que se havia passado durante aquelle intervallo lugubre. Todavia, a minha memoria regorgitava de terror ambiguo e vago, e por isso mais terrivel. Era como uma pagina horrorosa do registo da minha existencia, escripta em caracteres obscuros, medonhos e intelligiveis, que em vão me esforçava por decifrar. De vez em quando, comtudo, semelhante ao echo de um som esvaecido, vibrava-me aos ouvidos um grito fraco e agudo, uma voz de mulher. Que tinha eu feito? perguntava a mim mesmo em voz alta. E os echos do aposento murmuravam-me em fórma de reposta: Que tinha eu feito?

Em cima da mesa, ao meu lado, ardia uma lampada: junto d'ella estava uma caixinha de ébano. Aquella caixa não apresentava nada de notavel; eu tinha-a visto muitas vezes, porque pertencia ao medico da casa. Mas como tinha ella vindo para alli, para cima da mesa? E porque tremia eu ao comtemplal-a? Não valia a pena pensar n'isso. Entretanto, os meus olhos, encontrando as paginas de um livro aberto, fixaram-se sobre uma phrase sublinhada. Eram as palavras singulares, mas muito sim-