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O domínio público no direito autoral brasileiro
– Uma Obra em Domínio Público –

determinado[1]. Ocorre que o bem protegido pela propriedade intelectual é imaterial, intangível, impalpável, e daí começam a decorrer as principais divergências quando se compara a propriedade intelectual às demais propriedades.

De fato, é justamente a imaterialidade que leva a apontar a primeira das principais diferenças entre a proteção conferidas aos bens que compõem a propriedade intelectual dos demais bens[2]. Os bens intelectuais são não-rivais, o que não ocorre com os outros bens. Significa dizer, de modo simplificado, que um bem protegido nos termos da propriedade intelectual pode ser usado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, com fins diversos, o que é impossível quando qualquer outro bem (material, tangível) é considerado[3].

Imagine-se, por exemplo, o uso de um texto ou de uma música. Diversas pessoas, em localidades diferentes, podem usar a mesma obra (trata-se aqui da concepção intelectual e não do suporte onde ela se insere, ou seja, o texto e não o livro; a música, não o CD) ao mesmo tempo, já que o uso por uma pessoa não rivaliza com o uso da mesma obra pelas demais.

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  1. Segundo José de Oliveira Ascensão, “[o] direito real tem por objeto uma coisa; o direito de crédito tem por objeto uma prestação. Mas enquanto o direito real recai sobre a coisa, o direito de crédito é um direito à prestação, como entidade abstrata, mas que toda a estrutura do crédito visa efetivamente a assegurar. Pois também o direito de autor tem por objeto a obra, mas não é correto dizer que recai sobre esta, a não ser como imagem; não é o que corresponde ao regime jurídico”. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997; p. 609. A construção do civilista português faz sentido uma vez que o Código Civil de Portugal prevê, em seu artigo 1302, que “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste código”. Em nosso sistema jurídico, entretanto, a propriedade pode ser exercida sobre coisa (que teria um significado atrelado a bens corpóreos) ou sobre bens em sentido estrito, conforme prega Caio Mário da Silva Pereira, ao analisar o que considera “bem”: “Bem é tudo que nos agrada: o dinheiro é um bem, como o é a casa, a herança de um parente, a faculdade de exigir uma prestação; bem é ainda a alegria de viver o espetáculo de um pôr-do-sol, um trecho musical; bem é o nome do indivíduo, sua qualidade de filho, o direito à sua integridade física e moral. Se todos são bens, nem todos são bens jurídicos. (...) Em sentido estrito, porém, o objeto da relação jurídica, o bem jurídico, pode e deve, por sua vez, suportar uma distinção, que separa os bens propriamente ditos das coisas. Os bens, especificamente considerados, distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são materiais, ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome bens, em sentido estrito” (grifos no original). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. I. 22ª ed. Atualização: Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008; pp. 400-401.
  2. As diferenças indicadas têm como base o direito autoral, embora possam, em alguns casos, ser aplicadas a outros ramos da propriedade intelectual. Como veremos adiante, os bens sujeitos ao regime da propriedade intelectual gozam de características distintas entre si, o que acaba por ter como consequência efeitos jurídicos diversos.
  3. Ao apontar a distinção entre a propriedade sobre bens materiais e a alegada propriedade sobre bens imateriais, Pugliatti alerta: “[a] lei pode estabelecer o direito exclusivo de alguém a um dado nome: este direito significa nada mais nada menos do que a faculdade de o titular de proibir a qualquer outro que use aquele nome; no entanto, não é impossível que outros o portem, mesmo sem retirá-lo dele; aliás, é impossível que o retire, dele, o que é exatamente o inverso do que acontece com as propriedades físicas, onde a usurpação total da coisa não pode ocorrer senão mediante a expropriação do proprietário: é uma lei física da matéria, que exige não apenas uma regra da lei antiga como a que duorum in solidum dominium vel possessio esse non potest”. Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[l]a legge può ben sancire il diritto esclusivo di alcuno ad un dato nome: questo diritto significa nè più nè meno che la facoltà del titolare di proibire a chiunque altro di portare quel nome; in linea di fatto però non è impossibile che altri lo porti, pur non togliendolo a lui; anzi è impossibilie che altri glielo tolga; il che è proprio il rovescio di quello che avvine per la proprietà corporale, dove l’usurpazione totale della cosa non può avvenire che mediante spossessamento del proprietario; è una legge fisica della materia, che ciò imponem e non soltanto una regola del vecchio Diritto come quella che duorum in solidum dominium vel possessio esse non potest”. PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà e le Proprietà. Cit.; pp. 249-250.