Página:O Inferno (1871).pdf/103

Wikisource, a biblioteca livre
O INFERNO
83

e pequenos. Os philosophos accusados d'este miseravel estado das almas, estão innocentissimos: não ha em tudo isso faisca de philosophia; raciocinio é coisa que ahi não vislumbra. O instincto é que desde tempos esquecidos, e não de ha pouco, nos propendeu áquelle cego materialismo: é a necessidade de arrostarmos com uma crença mortifera; é a vida que resalta d'entre as mãos desvairadas que intentam comprimil-a, e d'este desbordar de toda a fórma surdem os excessos.

Já não lhes abasta esquecerem o inferno. Quem o esquece são os fracos; os fortes vão mais além: escarnecem-no. Anda já por ahi o diabo cantado, e do mesmo feitio o inferno, e o céo com os seus moradores. E de taes canções vendem-se tantos exemplares como dos Canticos de S. Sulpicio: antiquissima impiedade, de que ha vestigios, não só na Grecia pagã, mas tambem nas fabulas da edade média, e até nas paredes das vetustas cathedraes onde os artistas zombeteiros esculpiram, ha mais de seiscentos annos, o Inferno de Béranger. A ironia mascarava-se então com tregeitos beatificos; o impudor, porém, não se disfarçava nem se constrangia.

Os lamuriantes da edade média talvez digam que, apezar das galhofas audazmente esculpidas nos portaes e córos das egrejas, esses antigos imaginarios criam no inferno, e que, no leito da morte, não foliavam, tremiam; que os fabulistas tambem tremiam, e que os castellãos e castellãs, plebe e burguezia, quantos se