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O INFERNO

é a lembrança de terem, por sua culpa, perdido Deus.»[1]

Pobre mulher! — disse eu entre mim lendo aquelle capitulo — vêr seu marido, tão bom homem, alcunhado de besta-fera! E topar em livro de piedade, onde procurava consolar-se, esta cruel sentença que de manhã ouvira da bôcca d'um sacerdote: É MUITO TARDE!... Quiz fechar o livro; mas o titulo do Dia seguinte, impresso em versaletes, susteve-me.

{{bloco centro|«SETIMO DIA
«DA ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO

«I. Poderá ir mais adiante a cólera de Deus que castiga prazeres que tão pouco duram com supplicios sem fim? Que desgraça não é isto! Não bastará que os males d'um condemnado sejam extremos? É forçoso que sejam eternos? Uma picada de alfinete é mal bem leve; todavia, se este mal durasse sempre, tornar-se-hia insupportavel. Ora, os tormentos do inferno que serão?

  1. O padre Bouhours foi um solerte engenho, bastante mundanal, que distillava a frio no seu gabinete aquella rhetorica medonha, cuja leitura, se lhe dessem valor serio, seria capaz de fazer abortar uma mulher gravida. Acintemente abastarda elle n'este livro a verdadeira doutrina ácerca do inferno, doutrina em que se aprende que os condemnados amam o peccado, pois que amar o peccado é odiar Deus; conhecendo, porém, a desmoralisação de tal pena, o padre Bouhours presume que os condemnados abominam o peccado, mas que os seus olhos se abriram já tarde, por maneira que substitue á pena immoral, mas apparentemente justa, uma pena de apparencia moral, mas para isso mesmo horrivelmente iniqua, por que detestar o peccado é amar o que ha mais avêsso ao peccado, isto é, a virtude, ou, mais ao claro, Deus. Segue-se que Deus deixaria infernados os que o amam e se arrependem de o haver offendido. N'outro capitulo da mesma obra o mesmo padre é de parecer que os condemnados não podem amar Deus. Mas, se elles não amam o bem nem o mal, nada amam; e então que vem a ser as penas espirituaes? Que soffrem? por que soffrem? por que se afflijem do perdimento d'um bem que não amam? e por que os afflige a perda dos prazeres que abominam? Tudo isso dispára n'um apontoado de sandices.