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O INFERNO

que uma de suas lagrimas resvalou sobre o Quotidiano do christão, e tudo que eu havia lido n'aquelle livro subitamente se desfez.

Estava ainda comtudo a minha alma perturbada. Interroguei o Christo. Não me respondeu. Então entrei em duvida se eu estava adormecido ou desperto. Vi — seria sonho? — um oceano de trevas alcantilar-se á volta de mim, e no seio d'essa escuridão immensa lampejava um frouxo raio de luz. E esta luz saia das fendas de um sepulchro, e Jesus estava deitado vivo n'esse sepulchro. Eu quiz levantar a pedra que o cobria, mas uns verdugos envoltos em trevas me deceparam as mãos; eu quiz balbuciar, e arrancaram-me a lingua; e assim mutilado, cego e mudo senti-me arrebatado e precipitado ás entranhas de um abysmo, e comprehendi que estava no inferno. O meu unico soffrimento ahi era a cegueira, e a espectativa anciadissima dos supplicios que me esperavam. E, como só tivesse ouvidos para entender, escutei, e comprehendi o seguinte.

VI

Ao principio ouvi um rumorejar estranho, que rolava prolongando-se ao travez dos espaços infinitos, e depois decrescia até ao ciciar da folhagem que a brisa da tarde acaricia, e por fim augmentava em estridor até exceder o roncar das vagas cavadas pela borrasca.