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O CHOQUE
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Meu serviço na casa era todo de rua, recebimentos, pagamentos, commissões de toda a especie. De modo que posso dizer que morava na rua e o mundo para mim não passava de uma rua a dar uma porção de voltas em torno da terra. Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas castas, pedestres e rodantes, como os baptizei, aos homens acima do commum que circulavam sobre quatro pneus. O pedestre, casta em que nasci e em que vivi até aos 26 annos, era um ser inquieto, de pouco rendimento, forçado a gastar a sola das botinas, a suar em bicas nos dias quentes, a molhar-se nos dias de chuva e a operar prodigios para não ser amarrotado pelo orgulhoso e impassivel rodante, o homem superior que não anda, mas deslisa veloz. Quantas vezes não parei nas calçadas para gosar o espectaculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante, que por elles se mettia a reluzir esmaltes e metaes ! O ronco de porco do klaxon parecia-me dizer : — "Arreda, canalha !"

Sonhei, portanto, mudar de casta e por minha vez levar os pedestres a abrirem-me alas, sob pena de esmagamento. E o novo peculio, com tanto esforço accumulado depois do desastre germanico, não visava outra cousa. Foi, pois, com o maior enlevo d'alma que entrei certa manhã na verdureira da esquina