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O PRECURSOR DO ABOLICIONISMO NO BRASIL
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nesse gesto, percebe-se apenas o desejo de escapar á tesoura da maledicência citadina, que não veria com bons olhos um membro de uma das melhores familias locais surpreendido em flagrante delito de ternura para com o bastardo de pele tão tostada. Mas fá-lo de qualquer maneira, pondo-se em paz com a sua conciência.

Isso foi em 1838. Dois anos mais tarde, esse mesmo pai extremoso, bom, afavel, cordialissimo, manda o pequeno para o retalho, como animal de troca e barganha. Poder-se-á concluir, em sã razão, que haja sido unicamente a pobreza, ou, talvez, alguma dívida de jogo,[1] o movel determinante dessa brusca, inesperada, incompreensivel mudança de atitude?

Não ha pai que, por motivo de penuria e de miseria, venda um filho. Pode dá-lo, uma vez se convença que o entrega a pessoa carinhosa que o eduque e o ampare. Mas, vendê-lo, nunca.

Poder-se-ia conceber que o fidalgo baiano, do qual não se conhecem atos brutais e apenas viciosos, conhecendo-se-lhes, ao contrario, os de bondade e coragem, tivesse, em poucos mezes degradado tanto a ponto de descer a um tal procedimento, que aberra clamorosamente das normas humanas e naturais?

E’ dificil crê-lo. A mim, individualmente, afigura-se-me de todo impossivel. Não seria muito mais razoavel supôr um lento, continuo, intenso trabalho de intriga

  1. A carta de Gama não o afirma, mas essa idéa surge naturalmente á cabeça do leitor pelo proprio contexto das frases.