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SONETOS.
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XCVI.

Os vestidos Elisa revolvia,
Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.

Entre elles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:

Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;

Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida.



XCVII.

Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Donde em ti odio e íra se converte!

Cuidei que para em tudo conhecer-te
Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.

Estavas tão secreto no meu peito,
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste geito.

Descubriste-te agora; e foi por via
Que teu descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuria.