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SONETOS.
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CIV.

Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao aureo sol estão tirando;
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos;

Esses furtados olhos tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando;
Essa divina graça, que em fallando
Finge os meus pensamentos não ser cridos;

Esse compasso certo, essa medida
Que faz dobrar no corpo a gentileza;
A divindade em terra, tão subida;

Mostrem ja piedade, e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi sofrimento, em vós dureza.



CV.

Quem pudéra julgar de vós, Senhora,
Que huma tal fé pudesse assi perder-vos?
Se por amar-vos chego a aborrecer-vos,
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.

Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe ver-vos?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorancia entendo agora.

Nunca soube entender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Indaque clara estava esta verdade.

Esta, em quanto eu viver, vereis inteira;
E se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.