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SONETOS.
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CXXXII.

Nunca em amor damnou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe he guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia
São humas illusões que leva o vento.

Abrir se devem passos á ventura:
Sem si proprio ninguem será ditoso:
Os principios somente a sorte os move.

Atrever-se he valor, e não loucura.
Perderá por covarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.



CXXXIII.

Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,

De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego

Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.

Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se banha.