Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/354

Wikisource, a biblioteca livre

offerecem,{280}
Os cornos inclinando, a desafio.
  Como ao que vence todos obedecem
E folgão de o ver fóra de perigo;
E outros com face esquiva o aborrecem.
  Ditoso aquelle, que co'o ferro antigo
Lavra os campos do pae, e se contenta,
Nos seus mólhos atando o louro trigo!
  Este a furia do mar não exprimenta,
Nem corre, por achar a pedra rica,
A estranha praia, que outro sol aquenta.
  Onde, quando a esperança o fortifica
Em adquirir mais ouro e mais riqueza,
Ouro, esperança, e vida a muitos fica.
  Este vive quieto na pobreza;
E deste confiarei que a anteponha
A quanto o mundo mais procura e préza.
  Comendo em mesa vil, não s'envergonha:
Antes bebe nas mãos a fonte pura,
Qu'em precioso metal cruel peçonha.
  Oh feliz tempo d'ouro! Ind'aqui dura,
Inda conversa aqui com os humanos
A Justiça, fugindo á gente impura!
  Quem visse bem tão claros desenganos,
E quanto mal nos vicios se apparelha,
No campo gastaria bem os anos.
  Ao dia a nossa vida se assemelha,
Porque quando no mar o sol se banha
Se costuma tingir de côr vermelha.
  Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
Lá no occaso da mal gastada vida
Rubicunda vergonha em mágoa estranha.{281}
            DELIO.