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Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/379

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Qu'em mil mudanças me anda rodeando;
Onde, se a algum bem subo, logo deço.
E assi ganho, e assi perco a confiança;
E assi de mi fugindo traz mim ando;
E assi me tẽe atado huma vingança,
Como Ixião, tão firme na mudança.
  Quando a vista suave e inhumana
Meu humano desejo, de atrevido,
Commetteo, sem saber o que fazia,
(Que da sua belleza foi nascido
O cego moço, que com setta insana
O peccado vingou desta ousadia)
Afora este penar, qu'eu merecia,
Me deo outra maneira de tormento:
Que nunca o pensamento,
Voando sempre d'huma a outra parte,
Destas entranhas tristes bem se farte,
Imaginando como o famulento,
Que come mais e a fome vai crescendo,
Porque de atormentar-me não se aparte.
Assi que para a pena estou vivendo:
Sou outro novo Ticio, e não m'entendo.
  De vontades alheias, qu'eu roubava,
E que enganosamente recolhia
Em meu fingido peito, me mantinha.
O engano de maneira lhes fingia,
Que despois que a meu mando as sobjugava,
Com amor as matava, qu'eu não tinha.
Porém logo o castigo que convinha
O vingativo Amor me fez sentir,
Fazendo-me subir{306}