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SONETOS.
XXXIV.

Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de huma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi os cabellos concertando;
Alli co'a mão na face, tão formosa;
Aqui fallando alegre, alli cuidosa;
Agora estando quêda, agora andando.

Aqui esteve sentada, alli me vio,
Erguendo aquelles olhos, tão isentos;
Commovida aqui hum pouco, alli segura.

Aqui se entristeceo, alli se rio:
E, em fim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vãa, que sempre dura.



XXXV.

Hum mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de que; hum riso brando e honesto,
Quasi forçado; hum doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso:

Hum despejo quieto e vergonhoso;
Hum repouso gravissimo e modesto;
Huma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso:

Hum encolhido ousar; huma brandura;
Hum medo sem ter culpa; hum ar sereno;
Hum longo e obediente soffrimento:

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno
Que pôde transformar meu pensamento