Página:Obras de Manoel Antonio Alvares de Azevedo v2.djvu/322

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das glórias do passado. — Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta — sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me a sombra de todos os sóis — beijei lábios de mulheres de todos os países — e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças — mu amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre — e uma agonia de poeta. Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. — Dele — olhai...

O velho tirou do bolso um embrulho: era um lençol vermelho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.

— Uma caveira! — gritaram em torno: és um profanador de sepulturas?

— Olha, mocó, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim, dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa cabeça quem podia ser esse homem?

— Talvez um poeta — talvez um louco.

— Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse — a poesia e a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação, e o entusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino sanguinário e fervoroso de Rouget de I'Isle, ou para, na criação do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar, de Byron havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?