Página:Peregrinaçam 09 54v-60v.djvu/10

Wikisource, a biblioteca livre
Fernão Mendez Pinto. 59

damaſcos, & tres boyoẽs grandes de almiſcar, & tudo foy aualiado em quatro mil cruzados, a fora hũa boa matalotagem de arroz, açucar, lacoẽs, & duas capoeiras de galinhas, que então ſe eſtimaraõ mais que tudo para conualecerem os doentes, de que ainda auia muytos, & começando hũs & outrosa cortar pelas peças ſem medo, nos prouemos de toda a falta que então tinhamos. Antonio de Faria vendo hum minino que tambem aly eſtaua de doze ate treze annos, muyto aluo & bem aſſombrado, lhe preguntou donde vinha aquella lanteaa, ou porque cauſa viera aly ter, cuja era, & para onde hia? o qual lhe reſpondeo, era do ſem ventura de meu pay, a quem cahio em ſorte triſte & deſauenturada tomardeslhe vòs outros em menos de hũa hora o que elle ganhou em mais de trinta annos, o qual vinha de hum lugar que ſe chama Quoamão, onde a troco de prata comprou toda eſſa ſazenda que ahy tendes, para a yr vender aos juncos de Sião que eſtão no porto de Comhay, & porq̃ lhe faltaua a agoa quiz ſua triſte fortuna que a vieſſe tomar aquy para vós lhe tomardes ſua fazenda ſem nenhum temor da juſtiça do Ceo. Antonio de Faria lhe diſſe que não choraſſe, & o afagou quanto pode, prometendolhe que o trataria como filho, porque neſſa conta o tinha, & o teria ſempre, a q̃ o moco, olhando para elle, reſpondeo com hũ ſorriſo, a modo de eſcarneo; não cuydes de mim inda que me vejas minino, que ſou tão paruo que poſſa cuydar de ty que roubandome meu pay me ajas a mym de tratar como filho, & ſe es eſſe q̃ dizes, eu te peço muyto muyto muyto por amor do teu Deos q̃ me deixes botar a nado a eſſa triſte terra, onde fica quem me gerou, porq̃ eſſe he o meu pay verdadeyro, com o qual quero antes morrer aly naquelle mato, onde o vejo eſtarme chorando, que viuer entre gente tão mà como vos outros ſois; algũs dos q̃ aly eſtauão o reprenderaõ, & lhe diſſeraõ q̃ não diſſeſſe aquillo, porque não era bem dito, a que elle reſpondeo, ſabeis porque volo digo, porq̃ vos vy louuar a Deos deſpois de fartos com as mãos aleuantadas, & cos beiços vntados, como homẽs que lhes parece que baſta arreganhar os dentes ao Ceo ſem ſatisſazer o que tẽ roubado, pois, entendey que o Senhor da mão poderoſa não nos obriga tanto a bolir cos beiços, quãto nos defende tomar o alheyo, quanto mais roubar & matar, que ſaõ dous peccados taõ graues, quãto deſpois de mortos conhecereis no riguroſo caſtigo de ſua diuina juſtiça. Eſpantado Antonio de Faria das rezoẽs deſte moço, lhe diſſe ſe queria ſer Chriſtaõ, a que o moço, pondo os olhos nelle, reſpondeo, não entendo iſſo que dizes, nem ſey que couſa he eſſa que me cometes, declaramo primeyro, & então te reſponderey a propoſito. E declarandolho Antonio de Faria por palauras diſcretas ao ſeu modo, lhe não reſpondeo o moço a ellas, mas pondo os olhos no Ceo, com as maõs ale-

H 3 uanta-