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CAVALLERIA RUSTICANA

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Correram dias. Minto. No vazio daquelle dissaborido viver no ermo o tempo não corria, arrastava-se com lentidão da lesma por sobre um chão liso e sem fim. Gerebita tornara-se-me enfadonho. Não mais narrava pitorescos incidentes da sua vida de marujo. Aderrado á ideia fixa da loucura do Cabrea só cuidava de me demonstrar os progressos della. Fóra desse thema sinistro a occupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo até vel-os sumirem-se na curva das agues, e formular hypotheses sobre a identidade da silhueta. Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pesca. Mas uma que surgia levava-me os olhos e a imaginação. Como casa bem com o mar o barco a veia! E que sordidos baratões craquentos são ao pé delle os navios a vapor!

Escunas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, hiates... O que lá vae passado, de leveza e graça! Substituem-n'as, ás graças leves, feios escaraveihos de ferro e pixe; a ciias que viviam de brisas e ventos, negros comedores de carvão. bicharoicos que mugem: roncos de touro enrouquecido.

Progresso anilgo, tu és commodo, és delicioso, mas felo a valer. Que fizeste da coisa linda que é a veia 'enfunada? do barco á antiga, onde resoavam canções de marujo, e todo se enleava de cordame, e trazia gageiro na gavea, e icndas de serpentes marinhas na bocca dos marinheiros, e a N. Senhora dos Navegantes em todos os corações, e o medo das sereias em todas as imaginações? Desfez-se a poesia do reino encantado de Amphitrita ao ronco dos Lusitanias, hotels ambulantes com garçons em vez de "lobos do mar", incaracteristicos, cosmopolitas, sem donaire, sem capitão de suissas, pitoresco no falar como seiscentos milhões de caravelias.

O carvão sujou a aquarella maravilhosa que desde Hamon e Ulysses vinha o veleiro pintando na tela oceanica...

— Se pára o caso dos loucos e te mettes com intermezzos relicenciados para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao pharol, romanticão de má morte.

— Devia castigar-te sonegando-te o epilogo do meu drama, filho do Café e do carvão.

— Conta, conta.

— Certa tarde Gerebita chamou a minha attenção para o aggravamento da loucura de Cabrea. Adduzia varias provas, concluindo:

— "Queira Deus não seja hoje!...

— "Tens medo?

— "Medo? Eu? de Cabrea?

Queria que tu lhe visses que estranha expressão de ferocia estampou-se-lhe no rosto... A conversa parou ahi. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem ru-