Página:Ultimas Paginas (Eça de Queirós, 1912).djvu/356

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No fundo do vale, o ribeiro, frio e límpido, toldado de arvoredo, saltava e espumava entre grossas pedras claras: um mosteiro rico de Domínicos ocupava toda a colina fronteira a Gonfalim, com a sua vasta, frondosa cerca: – e as duas margens eram ligadas por uma velha ponte romana de um só arco, onde o bom Senhor, para purificar a obra e a pedra pagã, mandara erguer um cruzeiro.

Desde muito, naquelas terras, os anos tinham sido de paz; as correntes da ponte levadiça, que se não levantava, estavam perras e cobertas de ferrugem; as ervas bravas cresciam nos fossos secos; na velha torre de onde se retirara, até o besteiro, que lá costumava dormitar, havia agora um pombal: – e o bom Senhor D. Rui engordara tanto, que nem saía à serra com os seus falcões, nem mesmo cavalgava o seu bom ginete, por nome Almançor, muito gordo também, e para sempre ocioso diante da manjedoura cheia.

D. Rui desposara a neta de mestre Ariberto, cancelário do Senhor Rei D. Sancho; e não havia, em toda a Beira, dona de melhor diligência e ordem no governo de sua casa. Trigueira, de olhos pestanudos e meigos, com um buço, e um peito de rola farta, D. Tareja, logo desde a alvorada, fazendo tilintar o seu grosso molho de chaves, distribuía a tarefa às aias, visitava a despensa e a capoeira, vigiava a fornada