Em lugar de ser culpado da nossa desnacionalização, eu fui uma das melancólicas obras dela. Apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de croché, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos de um velho escudeiro preto, grande leitor da literatura de cordel, as histórias que ele me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares. Havia aí certamente grandes lições de valor, de lealdade, de heroísmo: mas eram virtudes cavalheirescas que se provavam todas nos montes da Provença ou de Navarra. De cavaleiros portugueses, que dessem cutiladas nos mouros, nunca me contaram história alguma à lareira. Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais. As naus afundavam-se, os gajeiros gritavam terra, mas era tudo em frios mares da Bretanha. De navegadores portugueses, em galeões portugueses, não me contaram jamais história alguma à lareira.
Depois ensinaram-me a ler: e o Estado, que certamente tinha interesse em que eu soubesse ler, e que, por meio das suas Repartições Públicas, estudara prudentemente o livro que melhor me convinha, como lição moral, e como lição patriótica, meteu-me nas mãos um volume traduzido do francês e chamado Simão de Nântua.