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neiro, que já me conhece, que tem intimidade commigo, e nunca recusa cousa alguma!” Esta simples anecdota basta para explicar o feiticismo, no sentido rigoroso e primitivo da palavra. Hoje, a palavra dilatou o seu sentido. Por extensão, o vocabulo exprime toda a veneração profunda, exagerada, cega, de um objecto, symbolizando uma idéa, mesmo fóra da idéa religiosa. Ha, por exemplo, o feiticismo da bandeira. Em campanha, quando os soldados se arrojam de encontro á morte, alguns comprehendem que esse pano — é o symbolo da Patria; e, seguindo a bandeira, é a própria Patria que elles estão verdadeiramente seguindo. Outros, porém, os simples, os rudes, os de intelligencia curta ou inculta, são levados por um verdadeiro feiticismo, adorando a bandeira pela bandeira, como um selvagem da África adora o seu idolo, o seu pedaço de pau ou de pano, o seu feitiço. Ha ainda um feiticismo muito vulgar: o das palavras. Conheci, no tempo da escravidão, um fazendeiro, um senhor de escravos, que era um feiticista da palavra liberdade. Era italiano, e viera menino para a America do Sul; e, na sua mocidade, andara pela Argentina e pelo Uruguay, empenhado nas guerras civis desses dois paizes. Combatera contra Rosas e Francia; e dessas campanhas liberaes lhe ficara na alma um entranhado amor de liberdade. Falar-lhe em liberdade era dar-lhe ao coração banho longo de enthusiasmo e fé: afusilavam-se-lhe os olhos, avermelhavam-se-lhe as faces, precipitava-se-lhe o sangue nas veias, em rufos de febre. Findas as guerras, o homem enriquecera e comprara no Brasil uma fazenda, dedicando-se então a fazer brotar do solo o