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FOLHETIM


UMA LÔA DO NATAL EM PROSA


CONTO PHANTASTICO
DO NATAL
POR
CHARLES DICKENS
(Versão do original inglez)
ESTROPHE III


O segundo dos tres espiritos


(Continuado do n.º 8)


Martha não desejou vel-o afflicto, ainda sendo por brincadeira, de sorte que sahiu prematuramente detraz da porta d'alcova, e atirou-se-lhe aos braços em quanto os dois pequenos rodeavam Tiny Tim, e o levavam á cosinha para que elle ouvisse cantar o pudding na caçarolla.

— E como se portou Tniy Tim? perguntou mistress Cratchit depois de ter ralhado com Bob pela sua credulidade, e depois que este abraçara a filha com grande satisfação.

— Como uma joia, respondeu Bob, ou ainda melhor. Obrigado como elle está a ficar sentado por muito tempo só, não acreditas as muitas ideias que lhe passam pela mente. Disse-me, quando vinhamos para casa, que esperava ter sido notado na igreja pelo povo por ser coxo, pela razão de que os christãos se deviam recordar, principalmente em dia de Natal, d'AQUELLE que faz os coxos andar e os cegos ver.

Martha escondeu-se, e Bob entrou na sala com a manta d'agasalho do pescoço estendida pelo menos tres pés, não fallando na barra; o seu vestuario usado a ponto de se lhe ver o fio, estava muito escovado, para ter seus ares de festa.

Bob acarretava aos hombros o pobre Tiny Tim.

Este infeliz usava uma pequena muleta, e tinha nas pernas um apparelho chyropedico de ferro.

— Onde está a nossa Martha? exclamou Bob Cratchit.

— Ainda não veio, respondeu mistress Cratchit.

— Ainda não veio! repetiu Bob accommettido subitamente por um profundo desfallecimento e perdendo n'um instante toda a alegria com que trouxera Tiny Tim ás cabriolas desde a igreja. Ainda não ter chegado em dia de Natal!...

Ao pronunciar estas palavras a voz de Bob tornava-se tremula, e mais ainda quando disse que Tiny Tim principiava a fortalecer-se e a tornar-se mais vigoroso.

Ouviu-se tenir no soalho a activa muletinha de Tiny Tim, e antes de ser pronunciada alguma palavra mais, entrou elle escoltado por sua irmãsinha e irmão até ao banco junto do fogão.

Então Bob voltando os punhos da camisa disse: pobre rapaz! como se deste modo fosse capaz de os tornar mais aceiados — misturando n'um copo genebra e summo de limão, compoz assim uma especie de bebida quente, que poz a aboborar em cima do fogão, e entretando Pedrinho e os dois Cratchits pequenos, foram buscar o pato e trouxeram-no em procissão.

Seguiu-se tal borborinho, que se diria ser um pato, de todas as aves a mais rara. — um phenomeno de pennas, comparado com o qual um cysne é uma coisa vulgarissima; e na verdade um pato n'aquella casa era uma das maiores raridades possiveis. Mistress Cratchit fez ferver o molho, preparado d'antemão n'uma pequena caçarola; Pedrinho esmagou as batatas com inacreditavel vigor; Belinda assucarou o molho de maçã; Martha enxugou os pratos escaldados; Bob fez assentar Tiny Tim junto a si a um dos cantos da mesa; os dois Cratchits pequenos collocavam cadeiras para todos, não esquecendo as suas pessoas, e pondo-se de guarda a seus postos, metteram as colheres na bocca para se não atraverem a pedir pato, antes de lhes chegar a sua vez.

Até que finalmente foram collocados os pratos na meza e resado o benedicite. Succedeu-se uma pausa em que ninguem respirava, quando Mistress Cratchit olhando devagarinho para o trinchador preparava-se a craval-o no peito do pato; e quando metteu mãos á obra e que o recheio tão cubiçado se espalhou pelo prato, ouviu-se um grito unanime, que todos os circumstantes soltaram de prazer, e até Tiny Tim excitado pelos pequenos, bateu na meza com o cabo da faca, e gritou com voz debil — Hurrah!

Nunca se viu um pato igual. Bob disse que não acreditava nem era possivel que alguem tivesse cosido um pato como aquelle. A sua tenrura, sabor, tamanho e barateza, foram os themas da admiração universal.

Augmentado com o molho de maçã e com o recheio de batatas picadas, era sufficiente para o jantar de toda a familia; e na verdade, como muito bem disse Mistress Cratchit com garnde satisfacção (divisando um pequeno atomo d'um osso sobre o prato) não o tinham comido até ao fim! Todavia cada um d'elles satisfizera-se, e os dois pequenos principalmente enlabusaram-se até aos olhos com o molho de salva e cebolla. Mas então, tendo Miss Berlinda mudado os pratos, Mistress Cratchit sahiu só da salla — muito commovida para poder supportar a presença de testemunhas — afim de ir buscar o pudding e de o trazer para a meza.

Supponham que ainda não estava prompto! Supponham que elle se quebra quando o voltarem! Supponham que alguem tinha saltado por cima do muro do pateo, e o tinha roubado, em quanto elles estavam satisfeitos com o pato? A esta supposição as creanças fizeram-se lividas! Conjecturaram-se toda a especie de supposições.

Bravo! bravo! que espesso vapor! O pudding fôra tirado do tacho. Que magnifico cheiro como em dia de barrella! É dos guardanapos que envolvem o pudding. Que mistura de cheiros appetitosos, que fazem recordar o restaurante, a pastelaria visinha, e a lavadeira na casa seguinte! Era aquillo tudo o pudding.

Meio minuto depois entrou Mistress Cratchit, com o rosto afogueado mas radiante de prazer, trazendo o pudding, similhante a uma bala de artilheria mosqueada, tão duto e tão firme, nadando no meio d'um quarteirão d'aguardente inflammada, e ornado com um ramo d'azevinho de Natal espetado no topo.

Oh! que maravilhoso pudding! Bob Cratchit declarou, e em tom serio e calmo, que o tinha como a obra prima de Mistress Cratchit depois do seu cazamento. Mistress Cratchit respondeu, que confessava agora, visto já estar alliviada do susto que tivera, ter tido suas duvidas ácerca da quantidade de farinha necessaria para a confeição do pudding. Todos tinham alguma coisa a dizer a tal respeito, e ninguem disse ou pensou que era um pudding pequeno para uma tão numerosa familia. Na verdade seria proceder de villão, o d'aquelle que se atrevesse a dizer ou pensar similhante coisa. Qualquer Cratchit córara de pejo a tal inconveniencia!

Finalmente terminado o jantar foi varrido o fogão, e de novo accendido o fogo. Tendo sido provada a bebida composta por Bob, e considerada muito boa, foram postas sobre a meza maçãs e laranjas, e um punhado de castanhas sobre as brazas. Então toda a familia Cratchit se collocou á roda do fogão ao que Bob Cratchit chamava um circulo, querendo significar metade d'um; e ao alcance da mão de Bob Cratchit collocaram todos os crystaes da familia; dois calices, e um copo para creme com a aza quebrada.

Estes modestos copinhos serviram para receber a bebida quento do cangirão, tambem como as melhores taças d'oiro; e Bob servia a todos com os olhos radiantes d'alegria emquanto no lume estallavam as castanhas.

Bob propoz em seguida este brinde:

— Um alegre Natal para nós todos! Que Deus nos abençoe.

O que foi repetido por toda a familia.

— Que nos abençoe a todos! disse Tiny Tim, ultimo de todos.

Estava sentado junto do pai n'um pequeno banco.

Bob conservava na sua mão a mãosinha da creança, como se lhe quizesse dar uma prova da sua ternura e receiasse vel-o arrebatado de ao pé de si.

— Espirito, disse Scrooge com um interesse que nunca antes sentira, dizei-me se Tiny Tim viverá?

— Vejo um logar vago, replicou o Espirito, ao canto do pobre fogão, e uma muleta sem domno, conservada cuidadosamente. Se o Espirito Futuro não alterar nada, a creança morrerá.

— Não, não! disse Scrooge. Oh! não, Espirito bemfazejo! dizei que elle será poupado.

— Se o meu successor nada alterar d'estas visões, imagens do porvir, replicou o Espirito, então nenhum da minha raça encontrará mais esta creança n'este sitio. E então? tanto melhor se elle fallecer; o superfluo da população diminuirá.

Scrooge abaixou a cabeça quando ouviu as suas proprias palavras repetidas pelo Espirito, e possuiu-se d'um profundo arrependimento.

— Homem, disse o Espirito, se tendes um coração humano, e não adamantino, dai treguas a esse odios e phrases, até que tenhaes descoberto o que é o superfluo, e onde existe! Querereis acaso decidir quaes os homens que devem viver e quaes os que devem morrer? Pode muito bem ser que aos olhos de Deus, sejais mais insignificante e menos dignos de viver do que milhões de creaturas como o filho d'este desgralado. Oh! meu Deus! parece incrivel ouvir o Insecto na folha declarar que são demais os insectos vivos entre os seus irmãos esfomeados rastejanto no pó!

Scrooge curvou-se ante a reprehensão do Espirito, e tremendo deitou os olhos ao chão. Mas levantou-os rapidamente, ao ouvir o seu proprio nome.

— A Mr. Scrooge! disse Bob; á saude de Mr. Scrooge, patrão da Festa.

— Bello futuro, na verdade! exclamou Mistress Cratchit, fazendo-se córada. Desejava vel-o aqui. Havia de o regalar a meu modo, e elle havia de ter appetite se quizesse.

— Minha cara, replicou Bob.... as creanças... o dia de hoje...

— É necessario que seja dia de Natal, com certeza, disse ella, para se poder beber á saude d'um homem tão mizeravel, odioso, duro, e ruim como Mr. Scrooge. Tu conheces melhor do que eu as suas boas qualidades! Sabes bem quem elle é.

— Lembra-te, minha amiga, replicou Bob com humildade, que estamos em dia de Natal.

— Beberei á sua saude por amor de ti, e em honra do dia, disse Mistress Cratchit, e não por elle. Desejo-lhe longa vida, um Natal feliz, e um alegre anno novo — hade ser muito feliz e alegre, pois não!

Depois da mãe beberam as creanças á saude de Mr. Scrooge. Era a primeira coisa que faziam n'aquelle dia sem impulso do coração. Tiny Tim foi o ultimo a fazer a saude, mas de boa vontade teria cedido o seu brinde por dois pence.

Scrooge era o Papão da familia; a menção do seu nome lançou sobre aquella sociedade um sombrio veu que se não dissipou por uns bons cinco minutos.

Passado esse tempo ficaram dez vezes mais alegres do que antes, logo que varreram completamente da mente a ideia de Scrooge.

Bob Cratchit disse-lhe que tinha em vista um logar para Pedrinho, que, no casa de se obter, lhe poderia render cinco shillings e seis pence por semana. As duas creanças riram a bandeiras despregadas com a ideia de Pedrinho vir a ser um negociante; e o proprio Pedrinho olhava pensativo para o fogo por entre as pontas dos seus colleirinhos, como se estivesse já deliberando que emprego daria aos seus rendimentos.

Martha, pobre aprendiza em casa d'umo modista, disse-lhes então que obra tinha agora entre mãos, quantas horas trabalhava sem descançar, e como pensava ficar até tarde na cama no dia seguinte, visto ser dia de repouso e passal-o em casa.

Contou tambem como vira alguns dias antes uma condessa e um lord, e como o lord era da estatura de Pedrinho; ao ouvir o que, Pedrinho puxou tanto pelos colleirinhos, que os leitores não lhe teriam visto a cabeça, se tivessem estado em companhia dos Cratchits.

Durante todo este tempo circulavam as castanhas e o cangirão, e de quando em quando Tiny Tim, com uma voz triste mas melodiosa, entoava uma cantiga sobre um menino enterrado na neve, e entoava-a com maestria.

Em tudo isto não havia nada de muito aristrocratico.

Não era uma bella familia a de que fallamos; nenhum delles estava bem vestido, os seus sapatos estavam bem longe de poderem obstar á humidade; os vestidos estavam descozidos; e todavia eram felizes, gratos, satisfeitos uns com os outros e com o tempo, e quando Scrooge e o Espirito os deixaram, pareciam ainda mais satisfeitos á luz das chispas originadas pela tocha do Espirito. Scrooge não os largava de vista, e especialmente contemplou Tiny Tim até ao fim.

Neste meio tempo aproximou-se a noite, e a neve começou a cahir em grande quantidade; e á medida que Scrooge e o Espirito atravessavam as ruas, viam as lavaredas dos fogões das cosinhas e salas, o que fazia um effeito maravilhoso.

Aqui a chamma vacilante denotava os preparativos para um excellente jantarsinho de familia, com os pratos aquecendo em frente do fogo, e com cortinas espessas d'um vermelho carregado para impedirem o frio e a obscuridade da rua.

Todas as creanças da casa vinham a correr até á neve, ao encontro de suas irmãs casadas, irmãos, primos, tios e tias, desejando ser os primeiros a recebel-os. Acolá viram as sombras dos convivas reunidos desenharem-se nos transparentes; e alli distinguiam um grupo de lindas raparigas, muito agasalhadas e com botinhas forradas de pelles, fallando todas a um tempo, dirigindo-se com andar ligeiro a casa d'alguma visinha; desgraçado então do celibatario (aquellas velhacas feiticeiras bem o sabiam!) que as visse entrar com aquellas angelicas physionomias animadas pelo passeio!

A julgar pelo numero da gente que se via nas ruas dirigindo-se a reuniões d'amigos, ter-se-hia acreditado que ninguem ficava em casa para receber os convidados quando chegassem; mas era exactamente o contrario; não havia casa onde se não esperassem hospedes, fogão onde o carvão não estivesse empilhado até á abertura da chaminé!

Como o Espirito exultava por tal motivo! como descobria o seu largo peito, e abria a sua larga mão, pairando em cima daquella multidão, e espalhando com generosidade a sua alegria viva e innocente sobre quantos estavam ao seu alcance! Até o proprio lampeanista, caminhando atravez das ruas e dotando-as com chammas de gaz, já vestido e prompto para ir passar a noite a casa d'algum amigo, ria ás gargalhadas quando o espirito passava! mal pensaria o pobre homem que ia caminhando na companhia do proprio Natal.

De repente, sem que o Espirito pronunciasse a minima palavra para previnir o seu companheiro, acharam-se no meio d'um triste e deserto pantano, onde se viam aqui e alli monstruosas pedras brutas, como se fosse um cemiterio de gigantes. A agua espalhava-se por toda a parte sem que nada a retivesse — ou por outra, espalhar-se-hia se o gelo a não coalhasse, e só se via naquelle solitario logar musgo, giestas, herva brava e enfezada.

(Continua)