Paraíso Perdido/Livro IX
NÃO mais do canto meu serão assunto
Nem Deus, nem anjos, como sócios do homem
Que até-’gora indulgentes o tratavam
Com familiar franqueza e porte amigo,
Que em seu rural festim tomavam parte
Mostrando a urbanidade generosa
De ouvir quanto ele lhes dizer quisesse.
Dora em diante usarei trágico estilo:
A desconfiança atroz, a infida quebra
Direi, e a negra rebeldia do homem.
Direi do Céu, que o amor lhe perde agora,
A raiva, os ódios, o reproche, as iras, —
E a lavrada justíssima sentença
Que ao mundo trouxe um pélago de males;
Os dois sócios cruéis, Pecado e Morte,
E a Miséria, da Morte a precursora.
Magoado assunto! Mas é mais sublime
Que a cólera de Aquiles truculento
Perseguindo o contrário que lhe foge
Da pátria Tróia em roda das muralhas;
Ou de Turno o furor porque lhe vedam
Da Laurentina as prometidas núpcias;
Ou de Netuno e Juno a infesta raiva
Que aflições tantas urde ao Graio, ao Teucro.
Possa eu obter correspondente estilo
Da Musa celestial que me protege!
Ela, que se compraz de vir sem rogos
Na solidão da noite visitar-me,
Bondadosa me inspira, enquanto durmo,
Meus doces versos que espontâneos correm.
Muito há que para um canto heróico havia
Complacente escolhido este alto assunto;
Mas pude só agora começá-lo.
Meu gênio não me induz a cantar guerras,
Té-’qui único assunto crido heróico,
Estro gastando, com ambages fúteis,
A narrar fabulosos cavaleiros
Em batalhas fingidas destroçados, —
Ao passo que no olvido mudo fica
De almas sublimes a constância mártir.
Meu gênio não me induz a dar ao metro
Equipagens, brasões, carreiras, jogos,
Telizes de brocado, finas letras,
Arneses de alto preço, ígneos cavalos,
Brilhantes cavaleiros, manobrando
De torneios e justas nos combates:
Depois, de lauta mesa em torno postos,
Em magníficas salas onde os servem
Lestos pajens, solícitos trinchantes.
Do gênio o grão poder em baixo assunto
Não dá ilustre nome ao canto, ao vate,
De tais matérias a instrução recuso:
Este mais nobre emprego, que hoje tomo,
Basta para alcançar-me honrosa fama,
Se deste clima os gelos, se esta idade
Já crescida e morosa, não reprimem
Das minhas asas o seguido vôo;
Mas o que eu canto não é meu somente;
Traz-mo aos ouvidos a noturna Urânia.
Tinha-se posto o Sol, indo após ele
De tarde a estrela que na Terra espalha
O crepúsculo, rápido intermédio
Dividindo os confins do dia e noite,
E já de todo a abóbada de trevas
Cobria os circunfusos horizontes, —
Quando Satã, que ultimamente do Éden
Fugira expulso de Gabriel coa lança,
Mais precatado agora e mais imbuído
Em meditada fraude e ardis astutos,
A peito sempre tendo a ruína do homem
Apesar de prever penas mais cruas,
Intrépido outra vez no Éden entrava.
Escarmentado se ocultava ao dia;
Chegou à meia-noite envolto em sombras.
Uriel, que rege o Sol, o descobrira
Na outra vez que ali veio e aviso dera
Aos coros de anjos que o jardim guardavam.
Coa dor dessa expulsão pungido sempre,
Girou de noites sete o inteiro espaço,
A linha equinocial torneou três vezes,
Quatro vezes cruzou de pólo a pólo
Coa carroça da noite os dois coluros, —
Té que na oitava, pelo lado oposto
Às avenidas reforçadas de anjos,
Caminho lobrigou não suspeitado.
Ali um sítio havia (agora extinto
Pelo Pecado atroz, não pelo tempo),
Onde o Tigre, correndo junto do Éden,
Por caverna subtérrea ao jardim sobe
E, mesmo junto da Árvore da Vida,
Vai borbulhar em cristalina fonte.
Com o rio Satã se afunda e se ergue
Envolto em névoa aquosa, e logo encontra
Um sítio próprio que o tivesse oculto.
Havia ele indagado o mar e a terra
Desde o Éden té do Obi além das fozes
Passando o Euxino e a Meótide lagoa;
Dali foi-se do Antártico aos limites;
E enfim no rumo do Oeste o vôo arranca
Do Oronte até Dárien que tranca os mares;
De lá para as correntes do Indo e Ganges.
Nesta viagem pelo orbe instou atento
Em conhecer, com perspicácia fina,
Uma por uma as criaturas todas
A ver qual a seus fins era mais apta;
E escolheu entre todas a serpente,
O animal mais sutil que habita os campos.
Por largo espaço meditado havendo,
Mas na resolução sempre indeciso,
Tal arbítrio afinal tomou, pensando
Achar da fraude o mais conforme tipo,
Onde, como em morada própria, entrasse
E seus negros projetos escondesse
Dos mais agudos, prevenidos olhos.
Julgou que suspeitosos não seriam
Ardis ou manhas vistos na serpente,
Crida sagaz e arteira por instinto, —
E que, em outro animal sendo notados,
Corriam risco de incutir a idéia
De algum gênio infernal ali metido,
Vendo-se astúcia nele estranha a brutos.
Resolveu. Mas a interna, ardente mágoa
Primeiro exala assim nestes queixumes:
“Quanto co’os Céus, ó Terra, te pareces,
Se os não excedes! Produzida foste
Por habituado gênio a insignes obras:
A mais própria mansão serás de numes!
Por que faria Deus obra somenos
Depois de tantas ótimas mostrar-nos?
Terrestre Céu, brilhantes Céus te cingem,
Lançando em ti e para ti somente
Sucessivo fulgor de luz perene,
E com porte obsequioso concentrando
Em ti seus raios de sagrado influxo!
Se Deus (cujo poder a tudo abrange)
De tudo é centro no celeste Empíreo,
De todos esses orbes tu recebes
Produtoras virtudes sem quantia,
Estéreis neles mas que em ti florescem
Com portentoso arcano partilhadas.
Por elas brotam de teu seio as plantas;
Nasce de ti por elas majestosa
A multidão variada dos viventes
Em órgãos, em beleza, em graus de vida,
Em aptidão corpórea, em luz de engenho,
Tudo em mor perfeição reunido no homem.
Com que prazer teu âmbito eu volteara
Se algum prospecto me alegrar pudesse!
Dali, na térrea superfície mostras
Vales, montes, ribeiras, selvas, campos;
Além, no mar um fluido amplo e luzente,
E em redor fulvas praias que se adornam
De arvoredos, de rochas, brenhas, furnas:
Que deleitosa variação!... Mas nela
Não me é dado encontrar refúgio, asilo:
Quanto em torno de mim mais ditas vejo,
Tanto dentro de mim mais penas sinto:
Sou como um turbilhão de át’mos discordes:
Todo o bem para mim fez-se em veneno,
E nos Céus meu tormento requintara.
Já não insisto em habitar no Empíreo.
Visto que ser monarca ali não posso;
Nem já espero nas empresas minhas
Ver que meus infortúnios tenham tréguas:
Mas farei que outros sejam desgraçados
Como eu, inda que em pior meu mal se mude:
Só podem ruínas dar certo descanso
Ao ímpeto voraz de meus projetos.
Trabalharei por seduzir esse ente
Para quem feito foi o inteiro Mundo,
A fim que ele a si próprio se acarrete
Sua perda total e nela envolva,
Como em férvida enchente inevitável,
Quanto à sua existência se refira;
Com tais estragos minha raiva cevo.
Dos deuses infernais o único eu seja
Que obtenha a glória de arruinar num dia
Quanto esse Onipotente apenas pôde
Formar de dias seis no inteiro espaço,
Fora o tempo que dantes despendera
Na alta meditação deste desígnio,
Que parece ligar-se ao meu denodo
De libertar de inglório cativeiro
Quase a metade dos celestes coros
Só numa noite, e de deixar mui raro
De seus adoradores o concurso.
Ele, — ou por se vingar, ou porque à míngua
Nos exércitos seus cuidoso supra,
Ou porque o seu poder já gasto e idoso
Perdesse o tino de criar mais anjos
(Se eles contudo a criação lhe devem),
Ou para mais nos abater, — pôs fito
Em povoar os lugares que são nossos
Pela estirpe de nova criatura
Feita de terra e, de tão baixa escória,
Por ele alevantada, enriquecida
Co’os espólios do Céu que a nós pertence.
Pôs por obra o que havia projetado:
O homem formou; maravilhoso o Mundo
Para ele construiu, dando-lhe a terra
Para sua morada e seu domínio;
E sujeitou (que vil indignidade!)
Dele ao próprio serviço, à guarda dele,
Alados anjos, fúlgidos ministros.
Deles muito receio a vigilância:
Para iludi-la corro manso, obscuro,
Embuçado na névoa da alta noite,
E espreito por arbustos, por balseiras,
Onde esteja a serpente adormecida
Para dentro em seus círculos meter-me
A mim e os negros planos que me ocupam.
Que vergonhosa quebra! Eu, que noutrora
Pugnei com deuses para ser mais que eles,
Apertado serei dentro de um bruto,
De um bruto coa substância hei de mesclar-me,
Tomar de um bruto carne, embrutecer-me!
Eu, alta essência que aspirava ufana
Ao mais subido grau da divindade!
Porém quanto a ambição, quanto a vingança,
Para seus fins obter, se não aviltam?
Quem pretende, há mister descer tão baixo
Quanto alto quer subir, e em tais manejos
Sempre às coisas mais vis se vê exposto.
É doce em seus princípios a vingança;
Em breve amarga contra si redunda:
Embora! não me importa; está previsto
Desde que de tão alto me atiraram.
Vou-me contra esse que depois do Eterno
Logo provoca minha inveja ardente, —
Dos Céus contra esse novo favorito,
O homem de barro, filho do despeito,
Que Deus ergueu do pó em nosso ultraje:
Muito bem pago fica ódio com ódio.”
Assim falando, vai, qual névoa negra,
Com raso vôo percorrendo as balsas
A ver se em breve coa serpente encontra.
Eis que a vê: — enroscada em labirinto,
Coa cabeça no meio, imóvel dorme,
De ardilosas astúcias recheada;
Inda não causa dano, inda não busca
Escuras solidões, tristes cavernas;
Mas sobre farta relva em paz descansa
Sem ter sustos de nada e sem dar sustos.
Pela boca Satã lhe entra e se apossa
Dos sentidos brutais no peito e fronte,
E intelectual poder logo lhe inspira:
Mas não lhe quer afugentar o sono;
Nela encerrado pelo dia espera.
Logo a sagrada luz pelo Éden raia:
O deleitável, matutino incenso
As lindas flores úmidas exalam;
E os entes todos, que regula a vida,
Fazem subir do grande altar da Terra
Mudos louvores ao Autor de tudo
Que inspira com delícia o grato aroma, —
Quando do albergue sai o par humano,
E sua adoração vocal ajunta,
Das criaturas tácitas ao coro.
A melhor ocasião de aroma e fresco
Estão aproveitando; eles ventilam
Como vencer naquele dia possam
Mais trabalho, que a tão ampla cultura
As mãos ágeis só de ambos já não bastam.
E assim fala primeiro Eva ao marido:
“Muito até-’gora, Adão, lidado havemos
Para dispor neste jardim por ordem
A árvore, a linda flor, a tenra planta;
E um junto do outro temos empenhado
Nossos desvelos em tão grata lida:
Mas ninguém mais té hoje nos ajuda;
E, por grande que seja o empenho nosso,
Cresce o trabalho em progressão contínua.
Se um dia a decotar supérfluos ramos,
A limpar estes, a especar aqueles,
A atar outros, inteiro nós gastamos, —
De nós zombando, numa noite ou duas,
A bravios os traz seu pronto aumento.
Ouve o que a mente me sugere agora:
Deixa tu dividir nossos trabalhos;
Vai aonde a escolha ou precisão te induza:
Ou nesse tronco enrosca a madressilva,
Ou a trepar ajeita essa hera errante, —
Enquanto eu acolá naquelas moitas,
Onde as rosas co’os mirtos se entremeiam,
Muito que ordene até mei’-dia encontro.
Se junto um do outro assim um dia inteiro
A lida continuarmos, não admira
Que rir muito nos façam teus gracejos,
Ou puxem por conversa objetos novos,
Interrupção causando no trabalho
Que, principiando cedo, fica em pouco,
E a ceia sobrevém que não ganhámos.”
Dá-lhe dest’arte Adão meiga resposta:
“Minha querida, incomparável Eva,
Desta alma único amor e única sócia,
Que além de todos os viventes amo, —
Juízos bons empregas, bem cogitas
Sobre o modo melhor por que exerçamos
O trabalho que Deus aqui nos marca.
Esse desvelo teu muito te louvo:
Na mulher nada se acha mais amável
Que o estudo no doméstico regime
E as coisas boas a que induz o esposo.
Mas nosso Criador não nos detalha
Tarefa tão restrita que nos vede,
Quando precisos são, o ócio, o sustento,
As falas mútuas, alimento da alma,
A suave troca de gracejos, risos, —
Os risos, que à razão a origem devem,
Refusados por isso sendo aos brutos,
E de amor o incentivo em si nos formam, —
O amor, notável precisão da vida.
Para prazeres que à razão ligara,
Não para árduos afãs, nos fez o Eterno:
Sem dúvida ambos nós com zelo fácil
Impediremos que a bravias voltem
As ruas e avenidas necessárias
Para passearmos, té que nos ajudem
Mais jovens mãos que nos tardar não devem.
Mas se a conversação vês distrair-te,
Eu consentira numa ausência curta:
Bem acompanha a solidão às vezes;
Depois de curta ausência é doce a volta.
Contudo, noutra dúvida me entranho;
Temo-te dano se de mim te apartas:
Ouvimos ambos que maldoso o imigo,
Dos infortúnios seus desesperado,
A dita nos inveja e firme e astuto
Busca lançar-nos na desgraça e infâmia.
Perto ou junto de nós eu não duvido
Que atalaia com sôfrega esperança
A ver se encontra ensejo a seus desígnios:
Nossa separação lho põe mais apto:
Num, junto do outro mor barreira encontra
Porque com mútuo auxílio assim podemos
Ardis e assaltos repelir num lance.
Queira ele começar por que estraguemos
Nossa fidelidade a Deus devida;
Ou por introduzir feia desordem
No conjugal amor que mais o enraiva
Que as outras ditas todas que gozamos;
Seja isto ou pior, — não deixes, querida,
O lado fiel de que nascida foste:
Nele achas proteção, achas amparo.
Se à mulher tramas urde o p’rigo, a infâmia,
Mais salva e airosa está junto ao marido
Que a guarda, ou qualquer mal com ela sofre.”
Mas a virgínea majestade de Eva,
Qual dama que acha descortês o amante,
Com doce a austero porte assim replica:
“Prole da Terra e Céus, senhor da Terra,
Que um inimigo busca a nossa ruína
Bem sei, tanto por ti como pelo anjo
Que estive a ouvir num canto recatada
Quando ontem se fechava a tarde e as flores:
Mas... que duvidas da firmeza minha
Para contigo, para o mesmo Eterno,
Porque pode tentá-la esse inimigo,
Decerto ouvir de ti não o esperava!
Não sendo nós à morte e à dor sujeitos,
Nem receber, nem repelir nos cabe
Desse inimigo atroz, violência alguma:
De sua fraude então provém teu medo.
Temes que de Eva a fé e amor constantes
A fraude tal sucumbam seduzidos;
Como tão injuriosos pensamentos
Dentro em teu peito, Adão, abrigo encontram,
Julgando tu tão mal da esposa que amas?”
Esta resposta branda Adão lhe torna:
“De Deus e do homem filha, imortal Eva,
Por isso intata de pecado ou mancha,
Por desconfiar de ti não é que eu busco
Dissuadir de meu lado a tua ausência.
Mas sim por te poupar qualquer tentame
A que nosso inimigo audaz se atreva.
O tentador, em vão mesmo lidando,
Contra o tentado lança atroz desonra,
Porque fé corruptível lhe atribui
Que não está da tentação à prova;
Tu mesma, com furor, ódio e desprezo,
Te ressentiras da tramada injúria
Posto efeito não ter. Vês que não erro
Se de ti solitária quero a afronta
Apartar que a nós ambos o inimigo,
Posto que audaz, fazê-la não ousara;
Ou... se a fizesse, eu fora o alvo primeiro.
Suas malícias, seus ardis falsários
Não desprezes: sutil deve ser muito
Quem pôde seduzir no Céu os anjos.
Não são supérfluos os auxílios de outrem:
O impulso para todas as virtudes
Do influxo de teus olhos eu recebo:
Quando olho para ti, medrar me sinto
Em prudência, em valor, em vigilância,
E mesmo em forças se me são precisas:
Quando olhas para mim, no peito me arde
Com ascendente intensidade o pejo
De me ver enganado ou ser vencido.
E tu por que motivo não preferes
Sofrer a tentação sendo eu presente?
Por que a tua virtude em mim não busca
A testemunha que melhor lhe cabe
Para bem te apreciar essa vitória?”
Com porte familiar, Adão exprime
Dest’arte o seu cuidado e amor de esposo.
Mas Eva, que essas falas crê ditadas
Por suspeita que Adão contra ela tinha,
Replica-lhe inda assim em tom afável:
“Se é nossa condição viver no aperto
Onde imigo nos cinge astuto ou fero,
E cada qual de nós em qualquer sítio
Não ter o justo dom de igual defesa, —
Como, em silêncio ataques aguardando,
Possível nos será sermos felizes?
Mas o castigo não precede a culpa:
O nosso tentador só nos afronta
Conceituando-nos frágeis na pureza;
E esse infame conceito enche-o de infâmia
Sem que desonra em nossa face imprima:
Por que evitá-lo então, por que temê-lo?
A má suspeita em si quem prova falsa,
O jus adquire a duplicadas honras;
Acha paz dentro em si; os Céus o prezam;
É testemunha de seus próprios louros.
Virtude, fé, amor, nunca tentados,
Nunca mantidos sem socorros de outrem,
Qual abonado crédito merecem?
De deixar imperfeita a nossa dita
Nosso Onisciente Autor não suspeitemos,
Supondo-a para um só menos segura
Do que é quando ele de outrem se acompanha.
Sendo assim, nossa dita fora frágil;
E o paraíso, a p’rigos tais exposto,
Não seria por certo o Paraíso”.
Com ardente fervor Adão lhe torna:
“Ó mulher! Tudo quanto fez o Eterno
É quanto de melhor pode julgar-se.
À sua mão, em toda a Natureza,
Não escapou imperfeição ou falta,
E menos no homem, que o dotou de tudo
Que lhe possa firmar perpétua dita
Ou premuni-lo contra externa força:
Tem dentro em si o p’rigo e nele impera;
Dano o não lesa sem vontade sua,
E Deus deixou-lhe livre essa vontade,
E na obediência sempre a razão livre:
Reta ele a fez e indu-la a estar alerta,
Para do bem alguma falsa imagem
Não lançar-lhe a vontade em torpe engano
Que faça o que altamente Deus proíbe.
Vês pois que terno amor, não mau conceito,
Me impele muita vez que assim te avise:
Comigo o mesmo praticar tu deves.
Firmes estamos nós; mas é possível
Que de um dever sagrado desvairemos:
Preparado pelo hórrido inimigo,
Pode objeto especioso urdir ciladas
À razão que, esquecendo a vigilância
Tão restrita, por Deus recomendada,
Em repentino engano se despenhe.
Assim, a tentação tu não procures:
Evitá-la é melhor: quase que é certo
Que dela escapas se te não ausentas:
Teremos provas destas, não buscadas.
Dizes querer provar tua constância;
Tua ingênua obediência antes me prova.
Reconhecer ou atestar quem sabe
Não tentada a constância (tu perguntas)?...
Pois, se crês que essa prova não buscada
Há de achar-nos nós ambos mais seguros
Estando cada qual ausente um do outro,
Vai: se aqui não estás porque bem queres,
És por mim reputada mais que ausente.
Vai coa inocência que trouxeste ao Mundo;
Tuas virtudes todas te auxiliem:
Fez seu dever para contigo o Eterno;
Para com ele o teu fazer te cumpre.”
O patriarca da humana descendência
Falou assim. Mas Eva inda teimando,
Posto que em brando tom, por fim lhe torna:
“Pois vou com tua permissão: e levo
Tuas próprias palavras bem na mente,
Posto que ditas em ligeira frase;
Por elas sei que melhormente pode
Da tentação o assalto repentino
Fazer-nos sucumbir, do que esperado.
Vou com muito prazer; nem muito espero
Que tão soberbo e túmido inimigo
Queira ao mais fraco arremeter primeiro:
Mas, se assim o fizer, maior vergonha
Tem de caber-lhe na derrota sua.”
Assim tendo falado, a mão retira
Com terna mansidão da mão do esposo.
E, — qual ninfa ligeira das florestas,
Seja dos troncos, seja das montanhas,
Ou das que o coro adornam da alta Délia, —
Pelo bosque se entranha; mas no garbo
A mesma Délia, as deusas todas vence,
Inda que se não arma de arco e coldre
E sim de aprestos jardinais que as artes
Rudes inda e sem fogo haviam feito
Ou que trazidos pelos anjos foram.
Ornada assim, parece-se com Pales,
Ou com Pomona que a Vertuno foge,
Ou com a jovem Ceres, quando virgem
A Jove inda Prosérpina não dera.
Vai seguindo-a co’os olhos cintilantes
Por muito tempo Adão nela enlevado;
Mas... desejava mais tê-la consigo.
Que volte logo brada-lhe bem vezes;
Torna-lhe ela outras tantas que ao mei’-dia
Já de volta estará e pronto tudo
Que no jantar e sesta se precisa.
(Frágil Eva infeliz, quanto te enganas
Em teu regresso crendo! Atroz desastre!
Desde então no Éden tu jamais aprontas
Delicioso jantar, sono tranqüilo!
Do rancor infernal traça iminente
Lá te aguarda entre sombras e entre flores
Para te obstar a volta ou despojar-te
Da inocência, da fé, do empíreo encanto!)
Já desde o romper da alva o torvo imigo,
Uma simples serpente afigurando,
Estava fora e indagações fazia
Onde era crível que encontrar pudesse
Os sós dois entes da progênie humana,
Mas nos quais se incluía a raça inteira
Contra quem seus projetos assestara.
Nas vicejantes várzeas, nas ’lamedas,
Ao longo das ribeiras, junto às fontes,
Quaisquer canteiros ou pomares busca,
A ver se os pode achar na própria estância
Ou nalgum belo sítio de recreio.
Ambos queria achar; — porém mais gosta
Que lhe depare o acaso Eva sozinha:
Este é o gosto seu, mas não espera
O que tão raramente o acaso mostra.
Além da expectação, eis senão quando...
Eva sozinha ao longe lhe aparece.
Cinge-a, qual raro véu, nuvem de aromas;
As rosas, que em circuito se lhe apinham,
Da bela o meio corpo só descobrem,
E maior cor acendem-lhe nas faces
Co’o lúcido reflexo purpurino.
Endireita ela então meio curvada
Das flores as vergônteas dobradiças,
Cujas cabeças, que risonhas fulgem
Carmesins, cor de neve, azuis, cor de ouro,
Sem poderem suster-se, estão pendentes:
Erguidas ela airosamente as ata
Às ramagens do mirto, — e não se lembra
Que ela, sendo das flores a mais linda,
Ali se achava só, desamparada,
Do seu arrimo longe... e o raio perto!
Ei-la a cobra que vem: passeios corta
Por onde cedros, álamos, palmeiras
Pomposíssima abóbada entrelaçam.
Serpeando, ora levanta o colo altivo,
Ora coa terra cose-se, ora assoma
Sobre os bastos arbustos que a mão de Eva
Entretecera de mimosas flores,
Dispostos pelas margens dos passeios.
Continha este terreno mais delícias
Que os jardins fabulosos onde Adônis
Se diz que fora revocado à vida;
Mais que esses onde o filho de Laertes
Teve hospedagem do afamado Alcínoo;
Mais que esses (não ficção) onde o rei sábio
Coa linda egípcia esposa se entrelinha.
Muito admira o inimigo estes lugares;
Mas a pessoa de Eva mais o encanta.
Qual o habitante, que, metido há muito
No encerro de cidade populosa
Onde a pureza do ar alteram, danam
Subterrâneos canais, casas em pinha,
Aproveita do estio a manhã bela
E vai os ares respirar à larga
Entre aldeias risonhas, gratas quintas
Onde o odor vegetal, a messe em feixes,
Nas queijeiras o leite, os bois mugindo,
Qualquer prospecto ou som próprio dos campos,
De insólito prazer a alma lhe inundam, —
Se casualmente então por ali passa
Virgem formosa com andar de ninfa,
Ele, em quanto até’li cria agradável,
Mais encantos encontra em razão dela,
Mas de vê-la o prazer excede a tudo;
Tal de gosto exultou a serpe horrível
Observando este flórido terreno,
Tão ameno retiro, a amável Eva
Assim madrugadora, assim sozinha.
Da bela o empíreo gesto como o de anjo
Mas de mais fino talhe e mais brandura,
A engraçada inocência, as ações todas,
No maldoso Satã respeito incutem,
E com doce violência então embargam
De sua feridade o atroz intento.
Por breve espaço o Gênio da Maldade
Abstrato fica da maldade própria,
Esquece ódios, inveja, ardis, vingança,
E faz-se bom por distração momentos.
Mas do Inferno o furor que sempre o abrasa
E que ainda mesmo no âmago do Empíreo
Logo todo o prazer lhe sufocara,
Eis que em nova explosão tanto o atormenta
Quanto mais ele vê altas delícias
Jamais para seu gozo destinadas.
Súbito então recorda os ódios todos,
De sentir-se tão mau se congratula,
E excita assim seus feros pensamentos:
“Té onde, ó pensamentos, me levastes?
Com que suave impulsão vós conseguistes
Que eu me esquecesse do que aqui me trouxe?
Não me deleita o amor, de ódios me nutro:
Não quero Paraíso em vez de Inferno;
Nenhum prazer procuro; só intento
Lançar em ruínas os prazeres todos...
Exceto o que em destruir possa fundar-se:
Outra alegria para mim perdeu-se.
Tão fausto ensejo aproveitar me cumpre:
Eis sozinha a mulher; abre assim passo
A se intentarem as empresas todas:
O esposo (eu vejo ao largo) está não perto,
Cuja mente mais alta e ânimo forte,
Férvida valentia e heróicos braços,
Importa-me tratar com mais cautela.
Inda que consta de terrena massa,
Vejo nele um terrível inimigo,
E invulnerável é... não eu! Quão baixo
Posto o Inferno me tem, quão fraco a pena,
À vista do que eu fui na empírea corte;
De celeste beleza adorna-se Eva,
É credora de amada ser por numes:
Terror não mete, posto que ele exista
No fino amor, na insigne formosura...
Salvo se os acomete ódio tão forte:
Mais forte ódio lhe tramo, pois que o cubro
De amor coas aparências bem fingidas.
Por este rumo vou para perdê-la.”
Estas palavras o inimigo do homem
Soltou, hóspede mau na serpe oculto;
E para Eva formosa se encaminha.
Como depois, não roja pela terra
Com sinuosos corcovos ondulantes;
Mas base circular coa cauda forma,
Acima vai-se erguendo em roscas bambas,
E em movediça máquina se ordena,
Sobre a qual entonado se sublima
O luzidio colo auri-verdoso,
A cristada cabeça onde ígneos olhos,
Quais nítidos carbúnculos, cintilam:
Serpeando então co’o círculo da base,
E em sucessivas aspirais ondeando,
Avança pela relva em ar de torre.
Era jucundo e amável o seu gesto;
Casta nenhuma de serpente fora
Jamais, como esta, encantadora à vista:
Não eram destas em que Hermione e Cadmo
No ilírico país se converteram,
Ou de Epidauro se mostrou o Nume,
Ou se viu transformado o mesmo Jove
Quando, Ámon invocado, amou Olímpia,
Ou foi do Capitólio a ter coa bela
Que deu à luz Cipião, glória de Roma.
Anda primeiro em direção oblíqua,
Como o que busca e interromper receia
Sisuda personagem respeitanda.
Qual nau, que entregue a perspicaz piloto,
Manobrando de bordo a miúdo vira
À foz de um rio ou sobre um promontório
Onde varia a cada instante o vento, —
Tal a serpe manobra: e à vista de Eva
Dispõe garbosa no cilindro ondeante
Curiosas, diferentes perspectivas,
A fim de ver se assim lhe atrai os olhos.
Ocupada ranger ela ouve as folhas;
Mas atenção não dá, que pelo campo
Diante de si costuma ver tais brincos
Em toda a casta de animais, que atentos
Vêm com mais prontidão cumprir-lhe as ordens
Do que o triste rebanho disfarçado
Vinha à potente voz da maga Circe.
Mais a cobra se afoita, — e em frente de Eva
Pára espontânea, e nela fica absorta:
Curvando o colo nítido esmaltado,
Abaixando a cabeça e airosa crista,
Depois a miúdo cortesias faz-lhe,
E mesmo com respeito lambe a relva
Por onde ela pusera os pés mimosos.
Esta expressão de obséquio, inda que muda,
Atrair de Eva enfim consegue os olhos,
Que do bruto nos brincos se divertem.
Ele, contente da atenção ganhada,
Assim da tentação a fraude enceta,
Ou ajeitando da serpente a língua,
Ou simulando no ar a voz humana:
“Rainha do Éden, rogo-te humilhada
Que não te admires se falar tu me ouves,
Tu que és a admiração de quanto existe.
Teus belos olhos, como o Céu tão meigos,
De cru desprezo contra mim não armes;
Nem te desgoste que eu assim tão perto
Com insaciável atenção te admire.
Venho sozinha sem que tenha susto
Da majestade que em teu gesto adoro,
E que por seu recato mais se aumenta.
De teu excelso Criador formoso
Tu és a mais formosa semelhança:
De ti se admiram os viventes todos,
Que todos tua possessão se ostentam
E adoram tua angélica beldade,
À qual se curvaria inteiro o Mundo
Se inteiro contemplá-la ele pudesse.
Porém aqui em tão agreste sítio,
Entre animais, espectadores rudes
Que nem metade vêem quanto és de linda,
Quem contemplar-te pode além de um homem?
E que é um homem só... para admirar-te...
Tu que entre deuses como Deusa deves
Adorada e servida ser por anjos
Em corte sem quantia, em pompa eterna?”
Com tal exórdio o tentador a adula:
Ardilosa a linguagem rompe afoita
De Eva maravilhada o incauto peito.
Dest’arte enfim atônita responde:
“Que ouço! Do homem a fala exprimem brutos?
Na voz de brutos a razão humana?!
Aquela lhes julguei por Deus negada
Quando, da Criação no dia próprio,
Dos sons para a pronúncia os fez inábeis:
Sobre esta eu tinha dúvidas; bem vezes
Em seus olhos e ações a razão brilha.
Em ti, serpente, conheci por certo
O animal mais sutil dos campos todos;
Mas não de humana voz te cri dotada.
Repete esse milagre, — e dize como,
De muda que eras, conseguiste a fala;
E como, muito mais que os brutos todos
Que presenciando estou em cada dia,
Hoje tão minha amiga te fizeste.
Dize: tal maravilha é bem credora
Que a mais séria atenção se lhe dirija.”
Torna-lhe assim o tentador astuto:
“Imperatriz do Mundo, Eva fulgente,
Quanto queres saber posso contar-te;
Tens à minha obediência um jus solene.
Eu tinha dantes, como os outros brutos
Que na relva casual andam pascendo,
Grosseira concepção e baixo instinto
Quais o alimento meu: — comida e sexo
Eis quanto eu via; de sublime, nada.
Té que uma vez, os prados percorrendo,
Avisto ao longe uma árvore formosa
De frutos carregada que alardeiam
De cor de ouro e de grã mistão insigne:
Para admirá-la aproximei-me dela;
Eis me punge o apetite um grato aroma
Que dos ramos frondíferos se exala,
Muito mais aprazível, mais mimoso,
Que o suave cheiro do mais doce funcho
Ou do leite que à tarde está manando
Dos úberes das cabras, das ovelhas,
Quando os esquecem os cabritos e anhos
Retouçando no campo distraídos.
Resolvo não tardar um só instante
Em saciar o desejo que me abrasa
De provar as maçãs que são tão lindas:
Com simultâneo esforço a fome e a sede,
Por tão mimoso aroma estimuladas,
Irresistível persuasão me induzem.
Eis no tronco me enrosco e vou subindo,
Que do chão alcançar só pode ao fruto
O teu talhe e o de Adão que altivos se erguem:
Todos os outros brutos em que atentas
Da árvore andam em roda, igual sentindo
Ardor para o gozar, mas não lhe alcançam.
Chegada a meio tronco, já mui perto
Os frutos pendem tentadores, tantos...
Eis apetite irresistível me urge...
Apanho, e deles como, ampla quantia,
Que tamanho prazer nunca eu gozara
No melhor alimento, em clara fonte.
Farta por fim, alteração estranha
Sinto em mim logo, e da razão o brilho
No entendimento meu sobe ao mor auge;
Vem pronto a fala, mas não mudo a forma.
Apliquei desde então a mente minha
Às especulações mais transcendentes:
E com ciência capaz, quanto é visível.
Quanto existe de bom, quanto há de belo
Na Terra contemplei, nos Céus, nos ares;
Mas quanto é bom e belo eu vejo unido
Em ti, de Deus imagem, que refulges
Imersa em luz de divinal beleza!
Da imensa Criação obra nenhuma
Pode a ti em beleza comparar-se:
Por isso hoje, talvez muito importuna,
Venho admirar-te e adoração fazer-te
Como à senhora que por jus domina
Os viventes do Mundo, o Mundo inteiro.”
Assim a astuta, espiritada cobra
Conta o fato falaz. E Eva imprudente
Por este modo atônita responde:
“Serpente, a adulação com que me louvas
De tal fruto depõe contra a virtude
Que em ti primeiro se mostrou provada.
Porém dize-me, essa árvore... onde a viste?
Está longe daqui? Tão várias, tantas,
Pelo Éden são as árvores do Eterno
De que pode gozar a escolha nossa,
Que muitas há por nós desconhecidas;
Que em larga profusão ficam pendentes
Da maior parte os frutos inda intactos
E em tempo algum à corrupção sujeitos,
Até que em mais quantia nasçam homens
Que por sustento seu venham tomá-los,
E mãos que possam concorrer coas nossas
A aliviar dessa carga a Natureza.”
Ardiloso e contente diz-lhe o bruto:
“Ó minha imperatriz, mal que ali passes
Do mirto a rua e a selva onde rescendem
O bálsamo mimoso, a loura mirra,
Logo a vês na planície ao pé da fonte:
É fácil o caminho e não extenso.
Se queres que eu te ensine, ali eu posso
Dentro em breves momentos conduzir-te.”
“Pois sim” — diz-lhe Eva. Então ligeira a serpe
Dela adiante caminha e mesmo em roscas
Indica pressa de ultimar o dano:
A esperança do mal lhe entona o colo
E mais lhe brune a púrpura da crista.
Qual vaga luz que, do vapor oleoso
Pelos frios da noite condensado,
Se desprende coa força do ar movido,
Crendo as gentes que nela vem um trasgo,
E fulge balanceando o tredo brilho
Com que desvaira por pauis e lagos
O viajante noturno — que iludido
Se afoga e morre sem que alguém lhe acuda, —
Assim fulgura a pérfida serpente
E conduz Eva ao âmago da fraude.
Nossa crédula mãe... ei-la que chega
Ao pé do tronco da árvore vedada,
De todo o nosso mal infanda origem!
E, vendo-a, fala ao condutor dest’arte:
“Serpente, vir aqui nos foi inútil.
Posto dos frutos ser mui larga a cópia,
De seu poder só fica em ti a fama,
Portentoso se causa o que em ti vejo.
Mas provar ou tocar nós não podemos
Nesta árvore de Deus que assim o manda:
Dele temos este único preceito;
Em tudo o mais de nós somos lei viva,
É nossa lei somente a razão nossa.”
O malicioso tentador replica:
“Pois certo?... De alguma árvore deste Éden
Manda-vos Deus que não comais os frutos,
Quando vos tem senhores declarado
De tudo que pertence ao térreo globo?”
Eva assim lhe responde inda inocente:
“Nós podemos comer dos frutos todos,
Exceto deste. A Adão o Eterno disse:
— “Desta árvore, que jaz no meio do Éden,
“Não comas, nem lhe bulas; senão... morres.”
Disse este pouco. Então dobrando a audácia,
Em favor do homem zelo e amor fingindo
E indignação porque injustiças lhe urdem,
Um novo ardil o tentador adota.
Como turbado e de paixões movido,
Com garbo sobre as roscas se balança:
E logo, endireitando altivo o colo,
Inculca ir encetar um grave assunto.
Qual orador dos que afamados tinha
A nobre Atenas, a valente Roma,
(Enquanto nelas a eloqüência augusta
Florescia coa luz da liberdade),
Que, importante discurso ruminando,
Todo em seu interior se recolhia,
Ao passo que uma ação ligeira nele,
Um lanço de olhos, qualquer gesto, tudo,
Antes da voz, os ânimos captava,
Té que, indo começar, erguia a frente,
Entrava na questão sem mais exórdios
Arrebatado pelo amor do justo, —
Dessa maneira o tentador se porta.
Flutua comovendo-se de afetos,
Alça depois o colo e assim prorrompe:
“Árvore sacra, manancial da ciência,
Teu poderoso influxo, oh quanto brilha
Dentro em minha alma que sapiente alcança
Por ele os nexos e as causais de tudo,
As mais profundas leis de quanto existe!
Imperatriz deste orbe, não te assustem
Essas ameaças rígidas de morte;
Tu não tens de morrer. Quem te matara?
Este fruto? ele a vida nos outorga
E a ciência para ver quanto ela vale.
O ameaçador? a mim teus olhos lança;
Eu toquei e comi cópia de frutos...
E inda vivo, e mais nobre vida gozo
Do que o destino se propôs a dar-me:
Transpus as metas que me impunha a sorte.
Veda-se aos homens o que é franco aos brutos?
Ou por tão leve transgressão o Eterno
Quererá que se acendam seus furores?
E antes não folgará vendo tão firme
Teu brio audaz, a quem da morte o ameaço
(Seja a morte o que for) não desanima
De ultimar o que pode pôr-te em gozo
De vida mais feliz onde conheças
O bem e o mal (o bem, para segui-lo;
O mal, a ele existir, para evitá-lo)?
Ser justo Deus e castigar-te disto
Não pode; e não é Deus não sendo justo:
Obediência e temor nem se lhe devem.
Atenta que não passa de um fantasma
Esse medo da morte que te incutem.
E tal proibição que fim conhece?
Que fim, senão em sujeição manter-te,
Ou constituir-te coa maior infâmia
Ignaro adorador de seus caprichos?!
Ele bem sabe que, no dia ovante
Em que dos frutos ambrosiais comeres,
Teus belos olhos, que tão claros julgas
Mas que inda tolda escurecida névoa,
Com luz brilhante se abrirão de todo:
Ficarás desde então igual dos numes;
O bem e o mal conhecerás como eles.
Que tu aleançarás de Nume a essência,
Como eu a essência interna obtive de homem.
De proporção exata se conclui:
Minha alma de brutal passou a humana,
De humana a tua ficará divina.
Tua morte talvez seja o trocares
Pela essência divina a humana essência:
Então já vês a morte apetecível
Não obstante com ela te ameaçarem,
Porque em melhor estado te apresenta.
E os deuses o que são, para que os homens
Sejam privados de gozar como eles
A quota parte do manjar divino?
De existência anterior gabam-se os deuses,
E assim avançam que vem deles tudo:
Nossa credulidade abona este erro.
Mas... por que desta mui formosa terra,
Do Sol pelos fulgores aquecida,
Vejo tudo nascer, e deles nada?
Se eles fizeram tudo, se esconderam,
Nesta árvore, do bem e mal a ciência,
Por que dela qualquer, sem que eles lho obstem,
Come e a sapiência de repente alcança?
E que ofensa fará contra eles o homem
Que deste modo a ciência obter procura?
Que mal fazer-lhes tua ciência pode,
Que pode transmitir este almo fruto
Deles contra o querer, se tudo é deles?
Mas será isto inveja? E como é crível
Que em peitos celestiais a inveja more?
Estas e outras razões, tão várias, tantas,
Mostram que muito te convém tal fruto:
Colhe-o, dele te farta, ó Deusa humana.”
Disse. E discurso tal, de astúcias prenhe,
Cala no coração da fácil Eva.
No fruto, que só visto tenta logo,
Os olhos fita — e ali fica pasmada:
Pelos ouvidos inda lhe murmura
O som dessas palavras tão suasivas,
Que de razão e de verdade julga.
No entanto já mei’-dia lhe vem perto
E pungente apetite lhe provoca,
Maior do fruto pelo odor que encanta:
Eis já de lhe bulir e saboreá-lo
O desejo transmuda-se em suspiros;
Já lhe cintilam sôfregos os olhos...
Suspende-se contudo um breve instante...
E assim mesmo consigo ela reflete:
“Grandes por certo são tuas virtudes,
Ó rei dos frutos: se és vedado aos homens,
De causar alto assombro o jus não perdes:
Teu sabor, sempre incógnito, inda há pouco
Fez pela primeira vez falar um mudo,
E ensinou a tecer teu elogio
A língua para falas não disposta.
Quem nos veda comer-te não oculta
De nosso entendimento os teus louvores,
Quando Árvore da Ciência ele apelida
Essa que te produz, — ciência que abrange
Do bem e mal a vastidão imensa.
Quanto mais saborear-te ele nos obsta,
Mais tal proibição te recomenda, —
Porque dela se infere o bem sublime
Que tu transmites, que possuir devemos.
Não serve para nada um bem oculto;
Se existe assim, é nula essa existência.
Quem conhecer o bem ousa vedar-nos,
O bem e a ciência veda-nos de um golpe:
Cruéis, atrozes leis ninguém obrigam.
E se nós somos súditos da morte...
Façamos bem ou mal, vem ela sempre.
No dia em que esse fruto nós provarmos,
Alta sentença à morte nos destina:
E morreu porventura a audaz serpente?
Ela o fruto comeu... e vive... e fala,
Julga, tira ilações, pensa, calcula,
Se muda e irracional em tempos de antes.
Somente para nós foi feita a morte?
A intelectual comida a nós se nega
Quando tão livre se concede aos brutos?
Decerto aos brutos... — e o primeiro deles
Que a provou, de tal bem não é avaro;
Antes alegre e generoso o inculca,
Isento de traições, estranho a fraudes,
Conselheiro insuspeito, amigo do homem.
Que temo eu pois? Ou, por melhor dizer-me,
Como sei eu o que temer me incumbe,
Se ignoro o bem e o mal, se não entendo
Nem lei, nem punição, nem Deus, nem morte?!
O remédio, que os danos todos cura,
Encontro neste fruto tão divino,
De lindo aspecto, de atraente aroma,
E de virtudes que a sapiência outorgam.
Colhê-lo, e por igual a mente e o corpo
Com ele alimentar, quem me proibe?”
Assim dizendo, a mão desatentada
Ergue Eva para o fruto em hora horrível;
Ela o toca, ela o arranca, e logo o come.
A Terra estremeceu com tal ferida;
Desde os cimentes seus a Natureza,
Pela extensão das maravilhas suas,
Aflita suspirou, sinais mostrando
Da ampla desgraça e perdição de tudo.
Nas brenhas se sumiu a infanda cobra
Sem que Eva a pressentisse, que do fruto
Só no sabor de todo se enlevava.
Julga então que deleite semelhante
Jamais em fruto algum tinha provado;
Seria assim, ou foi a fantasia
Que, pela forte expectação da ciência,
Fez-lho assim conceber, escandecida:
Crê já que se ia transformar em Deusa!
Com sôfrego apetite ela se farta
Sem conhecer que em si entranha a morte.
Saciada enfim, porém toldada a mente,
Com insana alegria assim se aplaude:
“Ó rainha das árvores deste Éden,
Sublime no valor, grande em virtudes,
Fonte infalível da sapiência excelsa,
Té hoje foste incógnita, infamada,
E teu fruto formoso aqui pendia
Como se o destinassem para inútil.
Mas, todas as manhãs assim que acorde,
De hoje em diante virei louvor devido
Cantando dar-te, e teus vergados ramos
Do peso aliviarei tão franco a todos, —
Té que, de modo assaz por ti nutrida,
Chegar da ciência à madureza eu possa,
Igual dos deuses que conhecem tudo
(Os deuses que invejosos nos cobiçam
Os dons que temos, e que dar não podem, —
Pois, a ser tal primor dádiva deles,
Não teria em verdade aqui nascido).
Ó lúcida experiência, em ti observo
O mais certo farol; se tu não fosses,
Inda em si a ignorância me abismara!
Tu da sapiência abriste a estrada nobre,
Tu a fizeste ver de oculta que era.
Mesmo eu aqui talvez esteja oculta:
Muito alto está o Céu, alto e remoto,
Para ver bem o que se faz na Terra:
Outro objeto talvez distrai agora
O nosso imenso repressor severo
Da contínua atenção com que olha este orbe;
Talvez seus vigilantes atalaias
Todos agora os tem do trono em roda.
Porém... a Adão como hei de apresentar-me?
Far-lhe-ei minha mudança conhecer,
Dar-lhe-ei a partilhar minha alta dita;
Ou não será melhor guardar da ciência
Em mim todo o poder sem partilhá-lo?
Juntara assim ao feminino sexo
Atrativos de amor sempre invencíveis:
Do masculino sexo igual ficara,
E talvez (o que certo me lisonja)
Fora-lhe superior de quando em quando!...
Quem, de inferior no grau, pode ser livre?
Tudo isto pode ser: porém... que fora
Se Deus me houvesse visto e viesse a morte?
Desde então nunca mais eu existira, —
E Adão, devendo ser de outra Eva esposo,
Com ela viveria alegre... e eu morta!...
Morte é pensá-lo! Firmemente quero
Feliz ou desgraçado Adão comigo:
Tão terno e tão ardente amor lhe voto
Que as mortes todas suportara co’ele;
Viver sem ele não reputo vida.”
Assim dizendo, da árvore se aparta
Mas antes faz-lhe humilde reverência,
Como ao poder que nela oculto mora,
De que ao fruto provém da ciência o suco,
Porção do néctar de que os numes bebem.
Por esse tempo Adão, que ansioso a espera,
Tecido havia de escolhidas flores
Uma grinalda para ornar-lhe as tranças
E as fadigas rurais assim coroar-lhe,
Como soem das messes à rainha
Fazer por gratidão os segadores.
Nova consolação, grande alegria
Promete a seu amor na volta dela,
Depois de ausência que supõe tão longa;
Mas de algum dano o coração pressago
Não deixava de em dúvidas metê-lo:
De tal ausência assaz conhece o risco.
Decide ir encontrá-la, e toma o rumo
Que ela pela manhã seguido havia:
Era o caminho da Árvore da Ciência,
Da qual Eva se aparta... e Adão que chega.
Na mão ela trazia um grande ramo
De belíssimos frutos carregado,
Que, em largo odor de ambrosia rescendendo,
Coa graciosa lanuge estavam rindo.
Para ele, assim que o vê, ela se apressa:
Sua desculpa traz no rosto escrita,
E astucioso louvor do que fizera.
Deste modo lhe fala meiga e branda,
E em frases próprias, que a mulher bem acha:
“Não te admirava, Adão, minha demora?
Nesta penosa ausência achei-te menos;
Mui pungente saudade a fez mais longa.
Que agonia a de amor! Nunca a sentira;
Nunca jamais a sentirei desde hoje:
Não mais tenciono suportar a pena
De te não ver: fui nisso leve e ignara.
Porém a causa ouvir de tal demora
Há de assombrar-te de estranheza e pasmo.
Esta árvore não é (qual se nos disse),
Para quem come dela, um dano imenso,
Nem para risco algum abre caminho;
Mas por divino efeito aclara os olhos
E ergue quem come dela ao grau de nume:
De tais prodígios há sobejas provas.
A serpente discreta (ou não obstada
Como nós somos, ou porque é rebelde)
Comeu do fruto, e... não morreu ainda
(Castigo com que muito nos ameaçam):
Pelo contrário, desde então possui
Humana voz, entendimento humano,
Persuasivo poder, razão pasmosa,
Que por bons argumentos conseguiram
Que eu comesse também tão grato fruto
E nele encontre análogos efeitos.
Sinto os olhos mais claros que eram dantes,
Mais vasta a mente, o coração mais nobre,
E ao ser de divindade ir-me elevando.
Para ti mais busquei tais privilégios;
Dispensá-los sem ti bem poderia:
Tenho por dita a dita em que tens parte;
Ódio e tédio me faz se a não partilhas.
Come também: no amor como iguais somos,
Nos dotes, na alta dita iguais fiquemos:
E bem pondera que, se tu não comes,
Diversa jerarquia nos desune;
E, quando mesmo renunciar eu queira
Ao grau de nume porque muito te amo,
Talvez já seja tarde e o fado mo obste.”
Eva com ar ovante assim refere
A história sua, mas no rosto lhe arde
Da inquietação o selo rubicundo.
O triste Adão, assim que ouve a notícia
Da transgressão fatal feita por Eva,
Atônito ficou, pálido e mudo;
Frígido horror do sangue se lhe apossa,
E totalmente as forças se lhe quebram:
Da decepada mão por terra cai
A grinalda que de Eva ser devia;
As rosas todas murchas se desfolham.
Pálido e mudo está. Mas finalmente
Assim, depois de um ai, consigo exclama:
“Ó tu, de quantas obras fez o Eterno
A final, a melhor, a mais formosa,
Criatura onde em grau o mais subido
Havia tudo com que mais se encantam
O pensamento e os olhos, doce tudo,
Tudo sagrado, amável, bom, divino!
Como perdida estás!... Como tão breve
Te desfigura e te desbota o crime!...
Como te vejo devolvida à morte!
E como a transgredir te resolveste
Restrição de tal força? e como ousaste
Violar o sacro, proibido fruto?
Do amaldiçoado, incógnito inimigo
Algum enredo te iludiu incauta, —
E a mim contigo à perdição levou-me,
Porque já decidi morrer contigo.
Certo, viver sem ti... eu... como posso?
Como deixar-me do prazer de ouvir-te,
E do tão terno amor que nos enlaça,
Para outra vez peregrinar sozinho
Por estes broncos e perdidos bosques?!
Se Deus quisesse produzir outra Eva
De outra costela minha, nem dest’arte
Deixara tua perda um só instante
De lacerar-me o coração saudoso.
Não! não! Sentindo estou que por mim puxam
Da Natureza os vínculos sagrados:
Carne e osso és tu da carne e ossos que tenho;
Fugir do teu destino o meu não pode;
Um só bem, um só mal, será o de ambos.”
Adão assim falou: depois (como homem
Que desmaiou de dor, e, despertando
De torvos pensamentos combatido,
Se submete a desgraça inevitável)
Com Eva desabafa mais tranqüilo:
“Cometeste, Eva, insana, um crime enorme;
Contra ti provocaste um mal imenso
Por sentença infalível destinado;
Fora delito grande ousar coa vista
O sacro fruto cobiçar somente:
Mas... tocá-lo e comê-lo, transgredindo
De Deus o mando, excede as metas todas!
E quem no grande livro da existência
Pode apagar os fatos que existiram?
Ninguém! nem mesmo Deus, nem mesmo o fado!
Mas contudo, inda assim, talvez não morras!
Talvez que seja menos grave a culpa —
Estando os frutos, antes que os comesses,
Pela boca da cobra profanados
E tornando-se assim comuns a todos!
Em verdade, mortais não foram nela,
Porque (segundo contas) inda vive,
Vive e ganhou viver com senso de homem.
Válida persuasão daqui se infere
Para crermos que nós, comendo o fruto,
Proporcional ascenso alcançaremos
Que o grau dos numes há de ser por certo,
Ou dos anjos que ombreiam quase os numes.
Julgo que Deus, o Criador previsto,
Não quer de coração, posto que ameace,
Aniquilar em nós sua obra-prima
Que, levantada a perfeição tão nobre,
As outras obras suas muito excede, —
As quais (como ele as fez para uso nosso,
Dependentes assim de nós ficando)
Também, na queda nossa arrebatadas,
Precisamente morrerão conosco.
Deus, deste modo, dando-se por fútil,
Fizera, desfizera, aniquilara,
Com ilusões perdera tempo e lida:
Compatível com Deus não é tal porte.
Mesmo a poder criar de novo tudo,
Ânimo não tivera de estragar-nos
Por não dar azo a que dissesse ovante
O adversário infernal: — “Precária sorte
“Dos que esse Deus com mais favor protege!
“E quem por muito tempo conseguira
“Cair-lhe em graça? Desgraçou tirano
“A mim primeiro, a humanidade agora:
“A flux da perdição quem vai seguir?”
Não armará decerto o seu contrário
Com tão forte razão de tê-lo em pouco.
Porém... seja o que for! hei de contigo
Sofrer a mesma sorte, a mesma pena:
Se me é dado sofrer contigo a morte,
A morte para mim é como a vida.
Dentro em meu coração sinto com força
A vívida atração da Natureza
Para meu próprio bem que em ti reside,
Para ti que esse bem me constituis:
Não pode separar-se a sorte de ambos,
Ambos possuímos nós uma só carne;
Se te perdesse a ti... era eu perder-me!”
Falou Adão. E assim responde-lhe Eva:
“Ó de um imenso amor exemplo ilustre,
Memoranda evidência, insigne prova!
Muito me empenho, Adão, por imitar-te;
Longe porém da perfeição que te orna,
Como conseguirei chegar a tanto?
Porque nasci do lado teu, blasono;
Enlevada te escuto quando dizes
Que de um só coração, de uma só alma,
Por certo somos animados ambos.
Do que avanças faz prova o dia de hoje:
Antes a morte preferir declaras,
Ou tudo que em horror a morte exceda,
A separar-te da querida esposa:
Expões-te, preso por amor tão caro,
A tomar sobre ti a pena, o crime
(Se algum houvesse) de comer o pomo
Que tão grato é de ver, cuja virtude
(Pois que sempre do bem o bem emana,
Quer seja ocasional, seja direto)
Produz de teu amor esta alta prova,
O qual de outra maneira não pudera
Com tão grande esplendor fazer-se visto.
Se eu pensasse que a morte que se ameaça
Havia de seguir-se ao meu tentâmen,
Só eu da pena o mal sustera todo
E não te persuadira a partilhá-lo:
Antes só eu morrer do que induzir-te
A fato pernicioso ao teu sossego,
Mormente estando eu certa, inda que tarde,
De tua fé e amor que iguais não contam!
Mas no futuro eu vejo outros sucessos:
Não morte, porém vida em grau mais alto.
Novos prazeres, novas esperanças,
Claros os olhos, paladar tão grato...
Que tudo, quanto saboreara dantes,
Insípido ou amargo lhe pareça.
Adão, descansa na experiência minha:
Dos lindos frutos livremente come.
E esse medo da morte entrega aos ventos.”
Disse; — e nos braços ela o cinge e aperta,
Chorando de alegria e de ternura.
E venceu: que a paixão por ela o doma
A ponto de induzi-lo a que antes queira
A morte, o ódio de Deus, por não deixá-la.
Em prêmio (pois tão má condescendência
Tem jus a prêmio tal!) of’rece-lhe ela,
Com franca mão, do fruto o lindo ramo.
Então ele, de escrúpulos despido,
Sabendo bem o que fazia, come
Não enganado mas... louco e vencido
Pelo poder dos feminis encantos.
A Terra toda estremeceu convulsa
Como pungida de outras agonias;
Deu segundo gemido a Natureza;
Surdo ruge um trovão, o Céu se tolda
E chora algumas lágrimas sentidas
Da culpa original no complemento.
Sem darem disso fé, Adão se farta,
E renovar a transgressão primeira
Eva quer por que mais o lisonjeie
Acompanhando-o assim no que lhe roga.
Porém depois, como toldados ambos
De vinho novo, em alegrias nadam:
Já imaginam que divina essência,
Dentro deles reinando, asas lhes cria
Com as quais voem desprezando a terra.
Eis que o falsário fruto lhes imprime
Antes disso um efeito desenvolto
E o carnal apetite lhes inflama.
Sobre Eva lança Adão sôfregos olhos,
Ela com outros tais lhe corresponde;
No fogo da lascívia ambos se abrasam,
Té que por esta frase Adão começa
De amor para o deleite a requestá-la:
“Tens, Eva, um paladar fino, elegante,
E da sapiência não pequeno vulto:
Por ti a cada pensamento nosso
Um sabor que lhe é próprio referimos:
Creio de intelecção dotado o gosto.
As graças rendo a ti porque alcançaste
Fazer assim brilhante o dia de hoje.
Perdemos de prazeres larga cópia
Enquanto deste fruto não comemos;
Nem tínhamos, como hoje, idéia exata
Do prazer, posto ser por nós sentido.
Se tal gosto há nas proibidas coisas,
Deveríamos querer que a dez subissem,
Em lugar de uma, as árvores vedadas.
Mas, fartos de manjar tão fresco e doce,
Vamos gozar um do outro: é justo, ó cara.
Desde esse dia em que te vi primeiro
Das mais sublimes perfeições ornada
E em que me concedeste a mão de esposa,
Nunca a tua beleza, como agora,
Conseguiu inflamar os meus sentidos
Com tal ardor de te gozar, ó bela.
Agora mais formosa estás que nunca:
Efeitos são desta árvore sagrada.”
Assim falou, e amiúda umas sobre outras
As doces vistas, as carícias ternas
Que no êxtase de amor sempre triunfam:
Eva, que bem o entende, está vibrando
Dos meigos olhos contagioso lume.
Pega-lhe ele na mão, — e, sem que ela obste,
A leva para um sítio recatado
Todo coberto de viçosa rama:
Da fresca terra ali no mole grêmio
Colchão se afofa de jasmins e lírios
Com amores-perfeitos misturados.
De ondas de amores, de ondas de deleites
Descomedidamente ali se fartam:
De seu mútuo delito este é o selo,
Esta a consolação do seu pecado, —
Até que fatigados de prazeres
Um orvalhoso sono enfim os prostra.
Mas, tão depressa se exalou a força
Do tredo fruto (cuja sutil aura
Lhes insinuou hilaridade nímia
Por todas as internas faculdades),
O sono, então já tórpido e grosseiro,
De vapores danosos produzido,
De remordidos sonhos carregado,
Os míseros esposos abandona.
Como de sono mau, eis eles se erguem
E ambos se observam com espanto mútuo;
Acham seus olhos nimiamente abertos,
Suas idéias nimiamente obscuras:
A inocência — que, igual a véu tapado,
O mal lhes ocultara, — havia-se ido,
E co’ela a retidão, a fé, a honra,
Deixando-os de vergonha só cobertos,
Cujo manto mais nus inda os mostrava.
(Sansão terrível, o Hércules danita,
Assim se levantou do leito impuro
Da filistéia Dalila, acordando,
Tonsa a coma, quebrada a valentia).
Então sentados um defronte do outro,
Nus, despojados das virtudes todas,
Confusos muito tempo se conservam,
Calados como de mudez feridos, —
Té que Adão, posto estar não menos que Eva
Corrido de vergonha, estas palavras
Como entaladas exalou do peito:
“Ouvidos deste, ó Eva, em hora horrível
À cobra, ou gênio mau que lhe ensinara
Como contrafaria a voz humana:
Da nossa queda proferiu verdade;
Da nossa elevação mentiu em tudo.
Temos abertos desde então os olhos;
Tanto o bem como o mal nos é patente,
O mal por nós ganhado, o bem perdido.
Eis o fruto da ciência, se este nome
Cabe ao que assim nos deixa nus, sem honra,
Sem pureza, sem fé, sem inocência,
Que de esplendor té’gora nos ornavam!
Tudo manchado em nós, sórdido é tudo;
A impudicícia nos afeia as faces,
E o postremo dos males, a vergonha,
Nos diz que os outros todos nos pertencem.
Como daqui em diante olhar eu posso
Para a face de Deus ou para a do anjo,
Té’gora a miúdo e alegremente olhadas?
De suas formas celestiais o brilho,
Para nós hoje nimiamente intenso,
Há de ofuscar-nos os terrenos olhos!
Oxalá pudesse eu em gruta escura
Solitário viver, onde altos bosques
Larga sombra noturna desparzissem,
Impenetráveis sempre aos astros todos!
Cobri-me vós, pinheiros, vós, ó cedros;
Com vossas densas ramas escondei-me:
Não ouso ver jamais nem Deus, nem anjos!
Nesta árdua posição imaginemos
O que encobrir-nos melhor possa agora
Quanto a vergonha recatar nos manda:
Busquemos alguma árvore que tenha
Largas e brandas folhas que à cintura,
Cosidas juntas, a ocultar nos sirvam:
Não deixemos que o pejo nos consuma,
Nem também que nos tache de impudentes.”
Eis de Adão o conselho: ambos se entranham
Dentro do bosque espesso e nele escolhem
A figueira — não essa que afamada
Hoje se estima pelo insigne fruto —
Mas que no Industão estende os braços
Tamanhos em largura e comprimento
Que entram na terra ao longe recurvados
Tomando ali raiz, donde outras surgem
Da árvore-mãe em torno árvores-filhas.
(Colunatas, abóbadas, arcadas,
Formam elas ali, sombrias, amplas
E passeios onde o eco repercute:
A miúdo neles o pastor indiano,
Fugindo do calor, abriga ao fresco
Os seus rebanhos que por sombras vastas
Em relva mui viçosa vão pascendo).
Dessas árvores folhas largas, longas,
Das Amazonas simulando escudos,
Colhem os tristes — e coa indústria própria,
Cosendo umas coas outras, largo cinto
Conseguiram fazer em que se envolvem.
Tentam dest’arte com baldado anelo
Cobrir seus crimes e hórrida vergonha!
Oh como esse atavio dessemelha
Da sua glória primitiva e nua!
(Tais neste último tempo achou Colombo,
Em selvagem nudez, só resguardados
Com cinturões de variegadas penas,
Da América os singelos habitantes
Vivendo entre arvoredos dilatados
No fértil continente, em férteis ilhas.)
Adão e Eva, pensando que dest’arte
Sua vergonha de algum modo ocultam,
Já não em paz ditosa, já não livres,
Assentam-se no chão e aflitos choram:
Mas inda o pior não é o acerbo pranto
Que chove de seus olhos em torrentes;
Mais dolorosas ânsias lhe fulminam
A cólera, o rancor, suspeitas, ódios,
Raivas, discórdias, hórridas tormentas
Que furibundas se lhes lançam na alma, —
Região, que antes possuía a paz celeste,
Mas agitada e turbulenta agora!
Seu juízo não regula, nem o atende
A vontade, que toda presa se acha
Do sensual apetite, baixo, imundo,
O qual agora da razão sob’rana
Insta por usurpar o sumo império.
Mas eis que Adão, desordenada a mente,
A vista incerta, perturbado o estilo,
Com fala entrecortada a esposa increpa:
“Se desses atenção às minhas vozes,
Ficando junto a mim, — como eu te instava,
Quando desta manhã no infausto instante
Tiveste o estranho ardor de te ausentares,
Ardor cuja causal eu não colhia, —
Nossa dita mudado não houvera,
Nem decerto estaríamos agora
De todo o nosso bem desamparados,
Nus, cheios de vergonha e de misérias!
Ninguém sem precisão busque sucesso
Que a sua própria fé submeta a provas:
Quem decide ultimar esta experiência,
Ressente-se de fé já corrompida.”
Então subitamente Eva incitada
Pela ferina pua do reproche:
“Que termos proferiste, Adão severo!
Imputas-me (lhe diz arrebatada)
De minha ausência o ardor, que assim lhe chamas?!
E... quem sabe se o mal a ambos ferira,
Se me eu não fosse, ou mesmo a ti somente?
Aqui ou lá se a tentação tu visses,
Não discerniras fraude na serpente
Ouvindo-a discorrer como discorre.
Fundamento nenhum de inimizade
Podia entre ela e nós haver-se visto:
Logo, por que motivo ela buscara
Ocasiões de fazer-me ofensa ou dano?
De teu lado sair nunca eu devera?
Não mais fora isso do que eu ser como antes
Costela tua sem vontade própria!
E tu, de chefe meu na qualidade,
Por que com mando de absoluto efeito
Não me ordenaste que dali não fosse...
Sabendo tu que iria expor-me a danos?!
Em tua oposição tu fraquejaste,
E nímio fácil afinal me deste
Licença, aprovação, com rosto afável:
Se nessa oposição tu mantivesses
Caráter firme, decisão constante, —
Nem eu, nem tu, teríamos pecado!”
Iroso a vez primeira, Adão lhe torna:
“Amas-me assim, de meu amor extremo
Assim me recompensas, Eva ingrata?!
Não to expressei de indubitável modo
Quando, perdida tu, inda eu podendo
Gozar da vida e de imortal ventura,
A tudo preferi morrer contigo’?
E tua transgressão lanças-me em rosto?!
Decisão assumir, firme caráter
Não soube, dizes tu, em reprimir-te:
Mais do que fiz... o que fazer pudera?
Baldei contigo admoestações, avisos...
Predisse-te as ciladas perigosas
Do imigo solapado... e não me ouviste.
Mais que isto fora praticar violência,
E violência é absurdo repugnante
Co’os altos foros de vontade livre.
Confiança plena em ti havias posto:
Crias que mal algum se te atrevesse,
Ou ter matéria de provança ilustre!
Também talvez então já eu errasse
Por admirar demais o que em teu porte
Me parecia tão perfeito a ponto
De crer que ao mal inacessível eras!
Mas pesa-me desse erro, hoje, tornado
Em crime atroz... E tu dele me acusas!...
Ver-se-á acontecer o mesmo sempre
Ao que, no tino da mulher confiando,
Deixe prevalecê-la em seu capricho.
Do esposo repressões ela rejeita:
E, se ele a deixa coa vontade livre
E de tal indulgência o mal resulta,
Ela, a primeira, a frouxidão lhe increpa!”
Em mútua acusação eles sem fruto
Gastam assim as enfadonhas horas:
Nenhum deles em si confessa a culpa;
Faz-se a contestação interminável.