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Parnaso mariano (1890)/Francisco Antonio Rodrigues de Gusmão

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FRANCISCO ANTONIO RODRIGUES DE GUSMÃO

 

Falleceu no dia 22 do proximo passado mez de fevereiro n’esta cidade (de Coimbra), pela uma hora da madrugada, na edade de setenta e tres annos, pois nascera a 6 de janeiro de 1815, o nosso excellente amigo,... o bacharel Francisco Antonio Rodrigues de Gusmão.

O illustre medico succumbiu ao cabo de prolongado e crudelissimo soffrimento, que motivara a cardio-ectasia por infiltração gordurosa do miocardio. Mezes inteiros de tortura physica e moral, alanceado pela preoccupação amarissima da orphandade, que lhe ia já enlutando a esposa e os filhos estremecidos, perpassaram ante seus olhos tristes, resignados, de uma tranquilla e perenne doçura de philosopho e de christão. A cultura esmerada do seu espirito em alliança com suas crenças religiosas, arraigadas e sinceras, collocavam-n’o corajosamente em face do problema terrivel da morte, como perante uma inilludivel fatalidade da natureza obediente em tudo aos mandatos do Creador. Durante esse largo periodo de lenta agonia, em que assistimos ao desapparecimento gradual de uma vida, tão laboriosa, tão util, tão exemplar, tão rica de bons exemplos que legou aos filhos e servem de espelho a extranhos, conscio intimamente do seu destino, nunca lhe escapou uma palavra de colera mal contida, de revolta, de protesto ou desfallecimento. Sobresaltava-o apenas a sorte dos seus; e foi este thema dominante de suas palavras nos dias sombrios de clausura, que a doença implacavel lhe preparou.

Finou-se, pois, um dos homens mais conhecidos e estimados entre os que em terra portugueza frequentam as lettras e as sciencias. Rodrigues de Gusmão foi um clinico habil, estimadissimo e feliz, nos logares onde exerceu, e onde deixou outros tantos amigos quantos os seus clientes; os fastos da sua pratica nobilitariam qualquer levita do bello sacerdocio, cuja alva tunica já vai manchando o lodo da especulação hodierna. Porém esse aspecto sympathico de seus serviços á sciencia encobre-o um pouco a roupagem mais rica e mais brilhante do escriptor, do erudito, do bibliophilo e do archeologo. Não foi um experimentador; não lh’o permittiam os recursos limitados do mister na provincia; não foi um therapeuta innovador e audaz; não foi um especialista, dividindo em mal disfarçados lances de agiota a integridade formal do organismo; não mirou seu animo claro alguma das incoerciveis excellencias, que constituem o apanagio de nossos modernos sabios. Foi um trabalhador sincero, de todas as horas, versando a bella linguagem portugueza com rara consciencia, amando incondicionalmente a boa leitura e os bons livros, de que possuia uma vasta, rica e curiosissima collecção, interessando-se por nossos fastos e monumentos, que estudava com amor e predilecção de patriota. Conciliado n’uma direcção concordante todo o trabalho que os actos quotidianos e o afastamento de um centro de estudos o obrigaram a dispersar por innumeras publicações, a sua obra fôra extraordinaria. Apezar, porém, de todas as circumstancias desfavoraveis, poucos medicos temos que hajam legado á posteridade tão variadas e multiplices publicações de bom quilate; entre os medicos provinciaes nenhum, nem antigo nem moderno, póde defrontar com Rodrigues de Gusmão.

Foi elle um exemplo, que infelizmente não deixará imitadores. Digam-nos que o medico na provincia pouco mais póde que praticar evangelicamente o seu ministerio; e que, chegando á noite a casa extenuado, após as fadigas incessantes de um dia de trabalho, mal poderá furtar o corpo ao descanço para repetir no dia immediato a mesma tarefa improba, crystallisando pouco a pouco n’uma rotina miseranda; eu lhes opporei victoriosamente o nome de Rodrigues de Gusmão, que soube registrar no mais accesso da sua faina clinica os factos, por qualquer titulo interessantes, de uma observação esclarecida. E afóra os trabalhos d’esta ordem ainda talhou ocios para redigir noticias litterarias, criticas, biographicas, bibliographicas e archeologicas, que d’elle fizeram um collaborador inestimavel, prestantissimo, da grande maioria das tentativas generosas, scientificas e litterarias, que durante quasi meio seculo se envidaram entre nós para o levantamento da cultura mental.

Em todos esses innumeros escriptos poz o nosso amigo o cunho de uma individualidade bem characterisada. Como escriptor a sua penna discorria sobriamente, com elegancia e concisão rarissimas, propria e vernacula, com dignidade e austeridade, predicados que o elegeram entre os mais grados escriptores nacionaes do nosso tempo. Como medico foi um seguidor fiel das doutrinas e preceitos hippocraticos, temperados pelos progredimentos modernos, que acompanhava com prudencia, mas ininterrupta e amorosamente, mostrando-nos instructiva harmonia entre as lições da tradição e os reptos do progresso; que foi um clinico consciente, meticuloso observador, sagaz semeiologista, attestam-n’o, para completar as outras prendas, muitas das suas memorias. Como erudito, bibliophilo e archeologo, poucos entre nós lhe levaram as palmas; de uma erudição certa, copiosa, segura, bebendo suas origens no conhecimento das humanidades latinas e gregas, nos textos purissimos dos prosadores e poetas da antiguidade classica, e ascendendo para os classicos nacionaes pela via segura da investigação nas proprias fontes, e tocando por todas as faces, ainda as mais previstas para quem o não conhecesse de perto, nos productos da publicidade moderna.

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1888.

Dr. Augusto Rocha.