Passagem das Horas
Aspeto
- Trago dentro do meu coração,
- Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
- Todos os lugares onde estive,
- Todos os portos a que cheguei,
- Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
- Ou de tombadilhos, sonhando,
- E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
- A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
- O coral das Maldivas em passagem cálida,
- Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
- Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
- E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
- A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
- Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
- Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
- Tempestades em torno ao Guardaful...
- E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
- E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
- Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
- Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
- Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
- Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
- E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
- A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
- Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
- Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
- Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
- Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
- Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
- Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
- Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
- Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
- Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
- Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
- Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
- Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
- Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
- Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
- Seja o que for, era melhor não ter nascido,
- Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
- A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
- A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
- Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
- E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
- Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
- E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
- Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
- Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
- É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
- Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
- Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
- Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
- Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
- Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
- Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
- Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
- Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
- Só estou bem quando ouço música, e nem então.
- Jardins do século dezoito antes de 89,
- Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?
- Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
- A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
- Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
- Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
- Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
- Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
- Minha quinta na província,
- Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
- Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
- E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
- Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
- Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
- Só humanitariamente é que se pode viver.
- Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
- Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
- Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!
- Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
- Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
- Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
- E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
- Amei e odiei como toda gente,
- Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
- E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.
- Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
- Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
- Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
- Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
- Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
- Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
- A direção constantemente abandonada do nosso destino,
- A nossa incerteza pagã sem alegria,
- A nossa fraqueza cristã sem fé,
- O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
- A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
- A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...
- Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
- De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
- Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
- Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
- Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
- Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
- Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.
- Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
- Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
- Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
- Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
- Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
- Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
- Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
- E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
- 'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
- Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
- Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
- Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
- Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
- Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
- Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...
- Sentir tudo de todas as maneiras,
- Viver tudo de todos os lados,
- Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
- Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
- Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
- Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
- Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
- Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
- Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
- Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
- E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
- São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
- E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
- Porque ser inferior é diferente de ser superior,
- E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
- Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
- E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
- E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
- E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
- Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
- Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
- Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
- (No mesmo abraço comovido)
- O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
- O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
- E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
- O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
- O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
- Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.
- Beijo na boca todas as prostitutas,
- Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
- A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
- E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
- Tudo é a razão de ser da minha vida.
- Cometi todos os crimes,
- Vivi dentro de todos os crimes
- (Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
- Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
- E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
- Multipliquei-me, para me sentir,
- Para me sentir, precisei sentir tudo,
- Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
- Despi-me, entreguei-rne,
- E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
- Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
- E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
- Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
- Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
- Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
- Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
- Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
- E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
- Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
- (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
- Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
- Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
- Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
- Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
- A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
- Os seus half-holidays inesperados...
- Mary, eu sou infeliz...
- Freddie, eu sou infeliz...
- Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
- Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
- Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
- Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
- Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
- Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!
- Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
- E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
- Meu coração tribunal, meu coração mercado,
- Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
- Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
- Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
- Estalagem, calabouço número qualquer cousa
- (Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
- Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
- Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
- Meu coração postigo,
- Meu coração encomenda,
- Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
- Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
- Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.
- Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
- Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
- Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
- Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
- E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
- (Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
- Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
- Com as cabeças femininas coiffées de lin
- E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
- Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
- E a fita entalada com o fechar da gaveta,
- Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
- Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...
- Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
- Definitivamente para todo o resto do Universo,
- E que os carros me passem por cima.)
- Fui para a cama com todos os sentimentos,
- Fui souteneur de todas ás emoções,
- Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
- Troquei olhares com todos os motivos de agir,
- Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
- Febre imensa das horas!
- Angústia da forja das emoções!
- Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
- A cadela a uivar de noite,
- O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
- O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
- A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
- Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
- Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
- Orgia intelectual de sentir a vida!
- Obter tudo por suficiência divina —
- As vésperas, os consentimentos, os avisos,
- As cousas belas da vida —
- O talento, a virtude, a impunidade,
- A tendência para acompanhar os outros a casa,
- A situação de passageiro,
- A conveniência em embarcar já para ter lugar,
- E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
- E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
- Poder rir, rir, rir despejadamente,
- Rir como um copo entornado,
- Absolutamente doido só por sentir,
- Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
- Ferido na boca por morder coisas,
- Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
- E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
- Sentir tudo de todas as maneiras,
- Ter todas as opiniões,
- Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
- Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
- E amar as coisas como Deus.
- Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
- Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
- Que a dor real das crianças em quem batem
- (Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
- E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
- Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
- Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
- Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
- E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
- Eu, enfim, literalmente eu,
- E eu metaforicamente também,
- Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
- As leis irrepreensíveis da Vida,
- Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
- O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
- Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
- E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
- Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
- Sem personalidade com valor declarado,
- Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
- Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
- E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
- Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
- Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
- Como uma frase escrita por um doente no livroda rapariga que encontrou no terraço,
- Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
- Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
- Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
- Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
- Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
- Coada através das árvores do jardim público,
- Eu, o que os espera a todos em casa,
- Eu, o que eles encontram na rua,
- Eu, o que eles não sabem de si próprios,
- Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
- Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
- O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
- O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
- A cicatriz do sargento mal encarado,
- O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
- A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
- E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
- Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
- Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
- Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
- O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
- O sacana do José que prometeu vir e não veio
- E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
- Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
- Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
- E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
- Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
- A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
- Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de ttido isto,
- E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...
- Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
- E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
- Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
- Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
- Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
- Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
- O baú das iniciais gastas,
- A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
- Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
- E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
- A Brígida prima da minha tia,
- O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
- E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
- Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
- Caem as folhas secas no chão irregularmente,
- Mas o fato é que sempre é outono no outono,
- E o inverno vem depois fatalmente,
- há só um caminho para a vida, que é a vida...
- Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
- Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
- E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
- Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
- Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
- E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
- Não me subordino senão por atavisnio,
- E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.
- Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
- Acessíveis à imaginação
- Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
- Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
- Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.
- No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
- Vou ao lado dela sem ela saber.
- No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
- Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
- Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
- Não há modo de eu não estar em toda a parte.
- O meu privilégio é tudo
- (Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).
- Assisto a tudo e definitivamente.
- Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
- Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
- Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
- Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
- Que não seja para mim por uma galantaria deposta.
- Fui educado pela Imaginação,
- Viajei pela mão dela sempre,
- Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
- E todos os dias têm essa janela por diante,
- E todas as horas parecem minhas dessa maneira.
- Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
- Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
- Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
- Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
- Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
- Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
- Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
- Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
- E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.
- Ho-ho-ho-ho-ho!...
- Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
- Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
- Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
- He-la-ho-ho ... Helahoho ...
- Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
- A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
- As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
- E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.
- Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
- Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
- Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
- De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
- Ho ----
- Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
- Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
- Ave, salve, viva a grande máquina universo!
- Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
- Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
- A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
- A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
- O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
- Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
- Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
- Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor
- Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
- Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
- Máquina universal movida por correias de todos os momentos!
- Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
- Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
- Infinito...
- Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
- Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
- E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
- Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...
- Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
- Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
- Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
- Rola ...
- Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
- E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
- Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
- Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
- Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
- Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
- Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
- A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...
- Ah, não estar parado nem a andar,
- Não estar deitado nem de pé,
- Nem acordado nem a dormir,
- Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
- Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
- Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
- Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...
- Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
- Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
- Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
- Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...
- Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
- Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
- Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
- Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
- Hup-la hup-la hup-la hup-la ...
- Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
- Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
- Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
- Clarim claro da manhã ao fundo
- Do semicírculo frio do horizonte,
- Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
- Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...
- Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
- Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...
- Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
- Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
- Tosse seca, nova do que sai de casa,
- Leve arrepio matutino na alegria de viver,
- Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
- Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
- Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
- Inevitavelmente vital,
- Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
- Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
- Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...
- Toda a madrugada é uma colina que oscila,
- ...................................................................... e caminha tudo
- Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
- E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge
- Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
- Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
- Do rodopio parado da minha retentiva seca,
- Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.
- Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
- Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
- Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
- Passeio lojistas "perdão" rua
- Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
- Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
- A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
- O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
- O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua
- Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
- Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
- Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
- Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
- Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
- Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
- Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
- Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
- Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
- Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
- Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
- Por todos os precipícios abaixo
- E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!
- À moi, todos os objetos projéteis!
- À moi, todos os objetos direções!
- À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
- Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
- Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
- A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!
- Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
- Velocidade entra por todas as idéias dentro,
- Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
- Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
- Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
- Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
- Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
- Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
- Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
- Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
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- Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
- Dec4ina dentro de mim o sol no alto do céu.
- Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
- Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
- Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
- Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
- Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
- Calcar, calcar, calcar até não sentir.
- Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
- Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.
- Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
- Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
- Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
- Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
- Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...
- Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...