Paulo/Dedicatória
À minha prima
D. MARIA AMÉLIA
e
a seu excelente marido
O DR. FRANCISCO MANOEL DAS CHAGAS
Estima e amizade
Caro Bruno. - Mandas-me perguntar o que penso do teu Paulo.
Tu bem sabes que sou um pouco severo com as nossas coisas de literatura, e tua amizade não tem poder nossas ocasiões, porque então não conheço amigos: vejo o livro, não sei do autor.
Portanto, crê-me: sou favorável ao Paulo.
O nosso bom J. mandou-me o original, acompanhando-o uma carta; nesta ele diz-me o que pensa a respeito. Na verdade, aquele coração de poeta, aquela cabeça inspirada que vergou ao peso do mundo, não estudou encômios para dispensar aos amigos.
Não sei que intenções são as tuas, mas dava-te um conselho, se vais imprimir o teu Paulo põe-lhe como prólogo a carta do nosso J., que mais judicioso o não encontrarás.
Aí te envio a carta: ela é que penso de Paulo.
Adeus.
Todo teu,
Insulano.
Desterro, 22 de fevereiro de 1861.
Meu caro S... - Tu foste sempre o meu companheiro infalível naqueles dias em que eu me aplaudia do desenvolvimento que tomava a literatura da nossa pátria; trabalhávamos ambos com a mocidade que nos vivificava o coração; tu, incansável, corajoso e forte: eu, obscuro e humilde nessa luta de moços, belos guerreiros do pensamento, cujas armas eram o talento e a força de ânimo, e cuja arena, o futuro do nosso belo país.
Cansamos, ou melhor, as circunstâncias nos fizeram cansar; quebrar indiferenças abater assim o desprezo e o desânimo gerais, seria querer galvanizar cadáveres há muito sepultos: o destino nos afastou dessa torrente harmoniosa que a muitos levou de vencida, e ficamos sós com as nossas a esperanças abatidas, com os nossos esforços inutilizados embora, mas com a crença e o entusiasmo no seio da alma.
Podemos, pois, nós dois conversar sobre o caminho que vão levando as letras nesta terra vilã e cheia de estorvos para o talento, assim em silêncio, no calado de nossas discussões ficaremos a coberto de qualquer malévola insinuação, assim como poderemos aplaudir-nos dos triunfos daqueles nossos antigos camaradas de estudo.
É sobre o trabalho de um deles que te vou dizer alguma coisa, sem pretensão a crítico, antes por aquele velho costume de comunicarmos mutuamente nossas idéias, nossos sentimentos, nosso espírito, em uma palavra.
Escrever-se um romance, meu amigo, não creio que seja coisa fácil, mesmo que já os tens escrito deves ter sentido o embaraço com que se luta, já não digo na formação do enredo, no drama que mais ou menos maravilhoso pode passar pela cabeça de um moço de imaginação rica e fértil como a tua; mas principalmente na naturalidade com que se sucedem as cenas, na propriedade, na descrição dos costumes do país em que se vive, e, ainda mais, na linguagem que não deve estar fora da verossimilhança, e não deve, por exemplo, ser ataviada e pomposa na boca de um pobre campônio e ridícula e áspera na de um cortesão.
Por esses motivos e talvez ainda por outros, têm sido os romances escassos entre nós; ao passo que abundam os poetas, estamos a míngua de romancistas e, entretanto, quantas lendas curiosas e típicas não povoam as nossas velhas e esquecidas crônicas! quantos episódios romanescos, abrigados no seio de nossas famílias, não esperam uma pena que os traduza, uma cabeça que os possa compreender!
Tu sabes disso muito bem: e Deus te dê força de vontade que espero que, por esse lado, hás de enriquecer muito a nossa tão desprezada literatura.
Um romance intitulado Paulo que vai publicar um poeta nosso conhecido, o Bruno Seabra, e cujo original te remeto a seu pedido, sugeriu-me essas idéias, e agradou-me porque satisfez em muito grande parte a minha expectativa.
Não é um trabalho perfeito, isento de alguns defeitos em que podem cair ainda mesmo os mais amestrados quanto mais um moço que começa; é uma prova, porém, já muito lisonjeira de sua fecunda imaginação, do seu estilo natural e apropriado ao assunto, e, o que é mais, de sua não vulgar originalidade, que não sou o primeiro a reconhecer, pois que antes de mim uma das mais belas inteligências da literatura portuguesa o tinha feito.
Paulo é um conto que tu lerás como aquelas histórias fantásticas alemãs de Hoffmann ou de Bürger; o coração palpita com medo do desenlace e sente-se de cada palavra, de cada idéia resultar uma coisa sobrenatural que não pode acontecer, mas que no entretanto nos enche de terror como se ela tivesse lugar junto a nós; Paulo interessa pelo drama, pelas personagens e, ainda mais, por alguma coisa de brasileiro que se descobre nesse encanto do maravilhoso alemão.
Era em uma de nossas províncias. Havia ali um artista de coração de poeta, dedicado ao trabalho, moço ainda, e entusiasta pelo sentimento do belo. A miséria que batia à porta de sua casinha e que viria em pouco abraçá-lo e as suas pobres mãe a irmã, abriu-lhe cedo os olhos e ele seguiu com aproveitamento e gosto a profissão que fora a glória dos velhos anos de seu falecido pai.
Paulo foi pintor à custa de seu trabalho, e a sua vocação decidida acabou por fazê-lo um gênio. Muita gente estimava o artista, e muitos respeitavam aquela lealdade e franqueza de caráter e aquele desinteressado amor pela família, a qual ele sustentava com o suor abençoado de suas fadigas.
O comendador B... e sua filha eram os mais assíduos freqüentadores da casa. Aquele, médico, retirado da cena política onde ingrata lhe fora a fortuna, estimava deveras o pintor como um tipo não vulgar de probidade; e sua filha, camarada de Henriqueta (irmã de Paulo), despertou na alma do moço um sentimento e o fazia esquecer os quadros, suas alegrias pelas idéias que passavam de sua cabeça para a sua palheta - o amor.
Amaram-se um ao outro. A mãe do artista que o estimava de coração, com um sentimento rústico mas não menos natural e ardente, indagou e soube da causa daquela tristeza em que andava seu filho. Com a consciência do mérito e da honradez de Paulo, essa pobre e boa mulher fala com a sua linguagem franca e ingênua ao comendador e a proposta é aceita. A alegria encheu aqueles pobres corações e o orvalho da felicidade parecia ter descido sobre a choupana verde daqueles amores.
O desejo de aumentar a fortuna fez resolver Paulo seguir para o Rio de Janeiro. Contava achar recompensa ao seu talento e a seus esforços nestes falsos protetores das artes, deixou sua mãe, sua noiva, sua irmã e o comendador, e, desembarcando na corte do Império, viu-se redondamente enganado e abatidas todas as suas esperanças.
Desanimado, quase sem dinheiro e prestes a voltar à sua província, o pintor teve ocasião de travar amizade com um moço chamado Eugênio, pobre mas de boa alma, verdadeiro poeta, a quem o jogo da sociedade tinha feito descrente, e que não trocaria as riquezas do mundo pela vida de seu cão Sócrates. Eugênio, por meio de um romance escrito a lápis, descreve ao artista sua vida cheia de peripécias curiosas e povoada de um encanto misterioso que desperta a atenção e a simpatia de quem o lê. É um tipo original, muito conhecedor do mundo e de suas mazelas, o menos crente nas falas da sociedade do que no olhar cheio de humildade de seu pobre cão. Paulo e Eugênio foram amigos, e por conseqüência o primeiro, que foi tão franco em cantar sua história ao poeta, também veio a ser sabedor da posição anormal deste último. Eugênio era poeta, e quis fazer fortuna com a poesia, mas escarneceram-no porque suas estrofes eram do coração, escritas aos sonhos formosos de uma alma de moço; pediram-lhe versos obscenos, e ele ganhou boas moedas pelos cantos prostituídos de sua harpa. Eugênio aconselhou, vendo o estado penoso de seu amigo, que também como ele atirasse ao lado suas belas imagens, visões mais puras e mais encantadas de suas noites, e que pintasse com o pincel cenas de libidinagem como ele o tinha feito com a pena. Ganhar dinheiro por esse modo era indigno dos sentimentos generosos de Paulo, e ele preferiu a miséria a tão hediondo e torpe sacrifício.
Entretanto, duas cartas, uma do comendador e outra de sua mãe, vieram trazer o desespero ao coração do artista. Emília (filha do comendador) ia se casar e seu pai rejeitava a proposta pela qual dera a sua palavra. O que se passou depois, a mágoa que arrastou o desgraçado pintor quase aos braços do suicídio, aquele delírio à meia-noite... e aquele tiro disparado sobre o retrato da amante como se a tivesse vestida diante de si com as sedas brancas do noivado, tudo isso, só se lendo, só se acompanhando uma a uma as idéias felizes do autor. Paulo seguiu viagem para sua província em companhia de Eugênio, a quem por fim, fazendo crer no amor, acabou por não fazê-lo desesperar da felicidade.
Chegando à sua terra, tornando a ver os lugares abençoados onde começou e onde adormeceu o seu amor, Paulo foi presa de um sentimento tão grande e tão profundo que não teve uma lágrima nos olhos, nem uma palavra à flor dos lábios para exprimir a mágoa e dor. Ele ficou mudo, e nos braços de seu amigo, de sua mãe e irmã foi levado para seu leito de morte.
Alguns dias depois recebia o pintor uma visita; era um homem de luto e magro como sucumbido pelos sofrimentos: era o comendador. A cena que teve lugar entre Paulo e o pai de sua amante é cheia de beleza, não só pelo inesperado do episódio, como principalmente pelo seu desfecho; dela resultou a morte de Paulo e a loucura do comendador.
O epílogo com que termina o romance é tocante e cheio de poesia. Eugênio casado com a irmã de Paulo, ao lar da família, tendo a seus pés o Sócrates, conta o romance deste seu fiel companheiro de destino, romance tanto mais curioso, quanto nele vem uma lição dada pelo bruto ao homem, pela máquina que se move pelo instinto ao rei da criação que se governa pela inteligência. O cão envenenado vem pedir ao suicida a vida que vai lhe ser arrancada e este salvando o cão aprende com ele a viver!
Agora, meu amigo, mais duas palavras; aí tens pouco mais menos o enredo de Paulo, deixo-o obscuro em alguns pontos porque desejo que o leias para devidamente sentires o que eu senti.
Naquelas personagens toma um lugar importantíssimo, senão o primeiro, esse moço Eugênio. Não é possível deixar de seguir com interesse as fases dessa vida tão original, tão maravilhosa e escrita, entretanto, em algumas notas tomadas a lápis: pode-se dizer, até certo ponto, que gênio é urna criação, que tomaria maior vulto se não aparecesse como ator secundário do drama.
Diversos pedaços deste romance impressionaram-me muito, falo-te com toda a franqueza; aquelas cenas do amor materno, meio agreste mas tão ardente e puro; aquele brio do artista em repelir o conselho de seu amigo, em não querer prostituir o seu pincel; aquele delírio de Paulo no dia mesmo do casamento de sua amante; a visita, depois, do comendador; tudo isso é traçado com grande talento, e num estilo não afetado, natural, poético pelas idéias e não pela forma.
São estas as impressões que senti com a leitura de Paulo; vai ele correr mundo e sujeitar-se ao imposto literário que há de variar segundo as opiniões supremas. Deus o abençoe que muitas vigílias custou ele e muita gratidão ao menos deve merecer dos amigos da literatura.
Adeus, lembra-te sempre
Do teu amigo de coração,
J.
Rio, 12 de fevereiro de 1861.