Paulo/VI

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Uma tarde, sua mãe e irmã, a um tempo, fizeram-lhe notar que tinham percebido não andar ele tão contente como dantes.

— É verdade - respondeu-lhes Paulo -, não ando contente com a minha vida.

— E de onde vem, filho, esse descontentamento? - perguntou-lhe enternecida sua velha mãe.

Paulo não respondeu.

— Não escondas - disse por sua vez Henriqueta, tomando-lhe as mãos com amizade. - Não escondas, meu irmão: o que é que te descontenta? Anda dize por que andas triste.

— Porque - murmurou ele -, porque... não sei...

— Paulo! - exclamou sua mãe.

— Olha - tornou-lhe Henriqueta, com os olhos umedecidos - mamãe chora, eu também choro, e és tu quem nos deixas chorar.

Paulo fez um movimento e tomou a mão de sua mãe, falando assim:

— Minha mãe, minha irmã, querem saber o que eu tenho? Pois bem, vou-lhes dizer tudo. Mas... dêem-me um instante.

Foi a seu quarto e voltou, trazendo um pequeno quadro coberto com um lenço.

— Minha mãe e minha irmã - tornou-lhes sem descobrir o quadro -, perguntam-me por que estou descontente da vida, por quê? Perguntam às andorinhas por que voam tão contentes pelos ares; perguntem aos outros passarinhos por que soltam seus cantos, saltando de ramo em ramo, de mangueira em mangueira tão contentes com a vida; perguntem às borboletas por que aí vão pelos campos todas contentes de si; perguntem às flores por que sorriem contentes às borboletas; perguntem aos sertanejos por que, contentes da sua vida, vão cantando as suas modas, enquanto as ovelhas, também contentes da vida, vão balando pelos montes; perguntem a todos por que vivem contentes - e saberão por que me descontenta a vida.

— E por quê? balbuciou Henriqueta.

— Dize por que, filho. - instou sua mãe. - Não me demores esta dor no coração.

— É porque - continuou Paulo - às andorinhas, às borboletas, às flores, aos sertanejos, às suas ovelhas, ninguém, ninguém impõe leis a esse sentimento que Deus uniu à vida de todos eles e bem à de todos os mais seres - o amor!

— Amor! - exclamou Henriqueta.

— E quem há de se intrometer com o teu amor? - tornou sua mãe.

— A sociedade, minha mãe, sim, ela que por ser eu um artista descendente de outro artista, se julga com direito de obrigar-me a constranger esse sentimento quando me o inspire alguém que porventura tira dela a sua linhagem.

— Ora, filho - tornou sua mãe -, eu não sei lá disso de linhagens nem de sociedades e nem se me dá saber dessas coisas; o que quero saber é a quem amas, rapaz, para ir perguntar já e já aos seus pais, ou a quem competir, em que é que eles são melhores do que tu, se te fizeram figas ao amor, ainda e seja o sobrinho do sol, dize filho, quem é? Deixa-me ver esse quadro, é o seu retrato?

— Sim - respondeu Paulo descobrindo o quadro.

— A filha do doutor! - exclamaram mãe e filha a um tempo.

— E como está parecido, mamãe! - continuou Henriqueta tomando o quadro das mãos de seu irmão e mirando com curiosidade.

— E a menina Emília também te ama? - perguntou a extremosa mãe.

— Ama - respondeu Paulo em meia voz.

— E por que estás descontente? - replicou-lhe a irmã.

— Eu sei, minha irmã! Talvez o doutor...

— Qual doutor! - atalhou a boa mãe; eu não é porque me aflija com o ver-te solteiro, rapaz, mas não quero que vivas triste por esse motivo; assim como assim, hás de casar sempre, seja mais tarde ou mais cedo, o que quero é ver-te contente da vida. Deixa o mais por minha conta. Até amanhã.

— Minha mãe - balbuciou Paulo -, o que vais fazer?

— É que esta trapalhada - tomou-lhe - amanhã há de ficar direita. Queria ouvir o doutor dizer-me alguma coisa que não me quadrasse ao coração! Havia de bater-lhe os pés e perguntar-lhe, que todo o mundo ouvisse, em que sua filha era melhor do que meu filho. Dá-me esse quadro, Henriqueta, preciso dele até amanhã.

Dizendo e tomando o quadro das mãos de Henriqueta, a boa mãe foi guardá-lo.

Paulo, silencioso, seguia com os olhos todos os movimentos de sua mãe, e Henriqueta contemplava-o com um amoroso e risonho olhar.

— Ai, minha irmã - murmurou ele aproximando-se dela e afagando-lhe as mãos - como eu seria mais feliz

— E eu como hei de gostar de vê-los ditosos - respondeu a afetuosa irmã afagando por sua vez as mãos de seu irmão.