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Paulo/XX

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— Valha-me meu Bom Jesus, que ouvi um tiro!

— E eu também..

— Que desgraça foi aquela, sr. Julião!

— Qual, desgraça! Aquilo é borracheira. Vá ver que não passa de algum beberrão que em falta de outra lembrança, lembrou-se de assassinar algum gato. Eu queria ser a polícia, palavra de honra, sra. Escolástica.

— Sra. Escolástica... sra. Escolástica?

— São os inquilinos, sr. Julião, não ouve chamarem-me?

— Parece-me.

— Sra. Escolástica... oh sra. Escolástica?...

— São eles mesmos... Lá vou, lá vou... O que aconteceu?

— Uma desgraça...

— Um suicídio nas águas-furtadas...

— Venha depressa, traga testemunhas, mande chamar o delegado e o inspetor de quarteirão... ande, sra. Escolástica.

— E esta!... Que incomodozinho a estas horas, sra. Escolástica... e eu que nem posso levantar-me!...

— Era o que me faltava ver! Cair uma desgraça em casa e ficar o sr. Julião na cama! Levante-se, não seja medroso; rua, sr. Julião, vá chamar o delegado... Esperem, vizinhos, já lá vou, não se mexam dos seus quartos... ainda não se levantou, sr. Julião ?

— Oh homem! Deixe-me refrescar um bocado, que não quero constipar.

— Já lhe disse que se levante, sr. Julião; não seja maricas no meio do perigo, homem de um dardo!

— Já me levanto, já me levanto, não se amofine. Aonde mora o inspetor?

— Não disfarce, homem; olhe que eu perco a paciência.

— Está bom, está bom: quem tem boca vai a Roma... que incomodozinho...

E o sr. Julião tratou de pôr-se ao fresco, enquanto a Escolástica foi gritar à janela, e acordassem os vizinhos e viessem servir de testemunhas da desgraça, que lhe caíra em casa.

A sra. Escolástica era a senhoria da casa, e como tal vivia regaladamente do rendimento dos quartos que alugava.

Aquele sr. Julião, que tão prontamente chamava aos outros de beberrões, era o esposo da senhoria, e, malgrado seu, devia a uma pequena indisposição de estômago ter passado o dia todo, até aquele momento, no seu juízo perfeito.

As vozes que chamavam pela esposa do sr. Julião eram de alguns inquilinos que ainda velavam.

Não tardou muito que não se enchesse a casa de gente.

Foram todos ter as águas-furtadas e cada qual, já informado do acontecimento pela boca da sra. Escolástica, ia fazendo a sua observação, quando a informante, como um general que desse a voz de alto ao esquadrão fez parar a todos, dizendo altamente:

— É aqui, meus senhores.

De fato, era ali. Estavam todos aglomerados à porta do quarto que Paulo ocupava.

Neste momento o subdelegado rompendo aos empurrões os grupos dos circunstantes, chama a atenção de todos, observando que vai mandar deitar a porta abaixo.

— Meus senhores e senhoras - clamou um dos circunstantes em seguida à observação do subdelegado; - pedi a palavra para declarar livremente a minha opinião que é a seguinte: acho justo e não acho justo o deliberatum do nosso distinto subdelegado. Justo, porque assim pede o caso, e não justo, porque a lei do país pugna pela liberdade do voto... perdão, senhores, quero dizer pela inviolabilidade dos nossos domicílios. Sim, senhores e senhoras, o que não dirá o estrangeiro...

O orador foi interrompido por um robusto permanente, que o chamou à ordem tocando-lhe levemente no ombro.

— Meu permanente - continuou ele mais calmo -, obedeço-vos humildemente já que representais a ordem em pessoa.

E não disse mais palavra e se ouvisse.

O orador era, sem mais nem menos, um capanga de eleições; estava meio tocado e por isso todo eloqüente.

Não se fez preciso que o subdelegado infringisse a lei do país, deitando abaixo a porta do domicílio de um cidadão. Com um pequeno impulso a porta deu de si.

O quarto estava às escuras.

Nenhum, de tantos circunstantes, inclusive o subdelegado, animou-se a entrar adiante.

O permanente, porém, que acabava de provar para quanto prestava, chamando à ordem o intruso orador, aproveita mais o ensejo para continuar a dar provas de si e desembainhando o seu refe, pede que o alumiem e dá um passo a vanguarda.

"Um fraco rei faz fraca a forte gente", disse Camões: eu digo por minha vez que anima o povo um bravo permanente.

Na verdade, apenas o destemido sereno da pátria deu o primeiro passo à vanguarda, todos se encheram de valor e foram entrando.

— Está morto - bradou ele dando com os olhos no artista estendido no soalho.

— Lá está a pistola - disse um curioso dando com a pistola a quatro passos de distância do corpo.

— Dêem-me licença... licença - disse um novo personagem entrando.

Era Eugênio.

Eugênio pedia licença como quem tinha direito de entrar. Todos se afastaram.

Entrou, aproximou-se do corpo do seu amigo, e depois de um pequeno exame, disse aos circunstantes:

— Não é nada, meus senhores.

— Pois o homem não está morto? - perguntou o subdelegado.

— Não, senhor - respondeu Eugênio.

— Talvez esteja monado - disse aos ouvidos do subdelegado o sr. Julião.

— Diga ao subdelegado que o prenda para da outra vez não incomodar tanta gente.

Isto disse aos ouvidos do sr. Julião um seu conhecido, que nessa noite por exceção de regra, não tinha ido hospedar-se no xadrez da polícia.

— Foi um acesso de delírio nervoso - tornou Eugênio aos circunstantes; - conheço este moço; tem sofrido algumas contrariedades na sua vida e disso parte a alteração de seu espírito. Vossas senhorias podem retirar-se, ele fica a meu cuidado.

— E o senhor quem é? - perguntou o subdelegado, querendo por sua vez mostrar para quanto prestava, quando já todos o consideravam sem préstimo algum.

— Sou um valdevinos - respondeu Eugênio.

A resposta foi dada com um certo tom que deixou em dúvida ao subdelegado e aos circunstantes se Eugênio era ou não alguma importante autoridade encoberta. Mas a sra. Escolástica, que havia muito o conhecia, tomou à sua conta satisfazer a todos, improvisando um longo discurso a favor de Eugênio.

Retiraram-se os circunstantes, fazendo cada um a sua observação, e comentando o fato lá a seu modo. Um dia depois, cada jornal também o noticiava diversamente.