Pensar é preciso/XII/Proposta de uma Constituinte sem políticos
Proposta de uma Constituinte sem políticos
“Só os visionários enxergam o óbvio”(Arnaldo Jabor)
O jornalista acima citado, Arnaldo Jabor, relata a seguinte confidência feita-lhe pelo imortal dramaturgo Nelson Rodrigues: se Deus perguntar para mim se fiz alguma coisa que preste na vida para entrar no céu, responderei: “Sim, Senhor, inventei o óbvio”. O escritor de peças e o crítico de arte concordam no fato de que o homem comum não enxerga a realidade das coisas que estão ao alcance de um simples olhar inteligente. Seguindo o instinto gregário, ele se alimenta do caldo cultural em que foi criado, sem pensar sobre a possibilidade de uma mudança da realidade que o faz sofrer, projetando sua felicidade num hipotético mundo sobrenatural.
As reflexões feitas ao longo deste despretensioso estudo sobre nossa realidade existencial ensejam medidas inovadoras, radicais. Mas, qual é a verdade que não dói? Vamos continuar com o “faz de conta” de promover reformas sociais? De ilusão também se vive, mas se vive mal, ao sibilar de balas perdidas, com o medo de assaltos e seqüestros, entre brigas de policiais e traficantes de drogas. Também se vive mal à vista de crianças pedindo esmolas nos semáforos ou de milhares de mortes nas estradas esburacadas e nos aeroportos mal cuidados, olhando os políticos surrupiar o dinheiro público ou na esperança de um deus nos acuda. Se quisermos salvar o corpo infectado, faz-se necessário amputar os membros cancerígenos!
É preciso entender que o problema da governabilidade do Brasil vem de longe e está nas instituições que tradicionalmente permitem o domínio permanente de oligarquias que sustentam e são sustentadas por currais eleitorais. A corrupção, como um câncer maligno, já se alastrou por todo o tecido social. Não tenhamos ilusões: enquanto os políticos continuarem a legiferar em causa própria e os juízes a tolerarem a impunidade e a injustiça, nenhuma reforma substancial irá ocorrer. A única saída possível do caos social e moral, em que sempre vivemos, mas agora está se tornando insuportável, colocando novamente em risco as liberdades democráticas, é a preparação de uma nova Carta Magna. Só com ela poderiam ser realizadas as reformas indispensáveis para o brasileiro usufruir direitos e praticar os deveres de cidadania. É preciso pensar numa nova ordem institucional que garanta, ao mesmo tempo, a estabilidade governamental e a possibilidade de mudança imediata, caso os anseios do povo não sejam atendidos.
Fundamental é que o conjunto de leis deveria ser elaborado não pelos atuais políticos detentores do poder, mas por uma Assembléia Constituinte composta de cidadãos honestos e competentes, imbuídos de um alto espírito patriótico, dispostos a trabalhar gratuitamente. Os constituintes deveriam jurar que não irão ocupar cargos públicos eletivos ou executivos, pois nunca deverá ser permitido legislar em causa própria. O pecado original da Constituição em vigor é que ela foi redigida por Deputados e Senadores da República preocupados mais em defender os privilégios corporativistas do que o bem estar social. Não preciso citar o nome de um ilustre Senador Constituinte pelo Estado de São Paulo que deixou seu cargo com o acúmulo de cinco polpudas aposentadorias, todas pagas com o dinheiro de nossos impostos!
Em vista de que a Presidência da República e os poderes do Legislativo e do Judiciário não estão interessados em promover as indispensáveis reformas estruturais, cabe à Sociedade Civil iniciar um movimento de conscientização para a construção de uma verdadeira cidadania. ONGs que cuidam de democracia, cidadania e transparência, ajudadas pelo “quarto poder”, constituído pelos meios de comunicação, deveriam convocar as forças vivas da Nação (Ordem dos Advogados, Sindicatos, Uniões de Estudantes, jornalistas, artistas, cientistas) para formular um esboço de Constituição, enxuta e assertiva. O projeto seria submetido à apreciação de todos os cidadãos, via Internet e outros meios de mídia interativa, para acolher sugestões. Sua redação final seria objeto de aprovação popular via Referendum ou Plebiscito.
Anteriormente a uma reforma do sistema político, qualquer eleição deveria ser considerada eticamente ilegítima. Um país é realmente democrático quando o voto popular é expresso livremente, sem nenhuma obrigação de ordem física ou moral. Ora, se o povo mais necessitado, que constitui a maioria absoluta dos eleitores, vende seu voto em troca de um benefício qualquer, sua escolha não está sendo livre. O voto de cabresto é a negação do próprio princípio democrático por causar um verdadeiro mercado: irá vencer quem tiver mais dinheiro para gastar ou, estando já no poder, oferecer mais regalias. Nossa desgraça é que o regime de prepotência ainda não acabou: apenas conseguimos substituir a ditadura pelas armas por uma ditadura pelo voto. Os governantes, para ficarem no poder, simplesmente compram o voto da massa popular mais carente e desinformada, em troca de uma bolsa, de um remédio, de uma assistência qualquer. Daí a formação dos currais eleitorais que permitem famílias de políticos dominarem imensas regiões por várias gerações, usando da máquina do Estado para sua propaganda eleitoral.
Para quebrar este domínio escravagista, portanto, é necessária uma nova ordem social. Não adianta fazer eleições se o povo não tiver maturidade suficiente para adquirir consciência de seus direitos e deveres, esperando a salvação num líder carismático. Eleições hipócritas, “para inglês ver”, existiam também na URSS, na Alemanha nazista, no Iraque de Sadam Hussein ou na Cuba de Fidel Castro. O lema Vox populi, Vox Dei é pura lorota. O povo sem cultura é dominado por impostores que sugam seu sangue. Uma vez por todas, é preciso convencer-se de que a salvação de uma Nação não está em algum Deus, Rei ou Presidente, mas no próprio povo, se adquirir consciência de que é ele que sustenta o Estado com o pagamento de impostos e não o contrário. Lutemos, pois, pela justiça e não pela caridade pública.
Termino estas ponderações reportando-me ao título que dei ao livro: Pensar é Preciso. A frase é uma glosa da expressão de Fernando Pessoa navegar é preciso, viver não é preciso. Alguns estudiosos interpretam os dizeres do ponto de vista histórico, outros do lado existencial. Navegar é preciso para conhecer novos mundos (especialmente com referência à aventura marítima portuguesa, cantada nos Lusíadas de Camões) e avançar na linha civilizacional. Mas para tanto precisamos de instrumentos de exatidão: bússola, razão, leis. E, sobretudo, a formação de uma consciência cívica, sedimentada no respeito ao nosso semelhante, em tudo que concerne a convivência em sociedade.
Como contraponto, para viver simplesmente, apenas como as bestas, não é preciso fazer uso da inteligência e do bom senso. Basta seguir o instinto gregário, vivendo conforme princípios ideológicos e costumes tradicionais, deixando-nos levar por crenças, preconceitos, temores, paixões. Pensar é preciso para superar o marasmo da opinião comum e atingir a harmonia e o amor universal entre os homens, só possível quando estes perceberem que ninguém pode ser feliz no meio do egoísmo individual ou de grupos e da ignorância generalizada, geradora da miséria material e espiritual de um povo. Atualmente, somos os humanos que ainda não superaram o estágio da selvageria, pois, na ilusão de sermos divinos por origem e destino, continuamos a nos esganar como animais!