Pobre menino!/II
Quando voltamos aos nossos bancos, parecia Alberto presa de agitado sonno. Pelo menos, tinha as palpebras cahidas, como que prostradas por vontade alheia ao organismo.
Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas veias – faces escarlates, beiços rubros, estremecimentos repetidos por todo o corpo, fulgurantes. Relampagos de frio – assim nos dissera – lhe zigzagavam pela espinha dorsal, contrahindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros, descarnados.
— Agua, agua, murmurou a custo, depois de algum tempo e abrindo com sofreguidão os labios seccos, ávidos.
O molecóte, Apresentou-lhe rapido um copinho de leite, cortado com agua mineral.
— Mió, nhonhô? Perguntou baixinho com expressão de tocante e inquieto interesse, miósinho.
Com um gesto de dedo, respondeu não o pobre do menino.
Em extatica e inexcedivel desolação, o contemplava a mãi, achegando os cobertores, quando um movimento mais impacientado e vivo do doente os atirava ao chão, n’aquellas crudelissimas alternativas de algidez e de inaturavel calor.
— Apenas chegarmos ao Rio- disse ella para o marido, que, sorumbatico, olhava pela janela a fugitiva paisagem – devemos logo embarcar, fazer uma longa viagem de mar, talvez até á Europa...
Entreabriu Alberto os olhos e, em tom de ligeira malícia, objectou:
— Ora, a malvada embarcará comnosco... Está dentro de mim; não me largará mais...
E o trem corria, corria! Entre Mendes e Rodeio, engolfou-se no tunnel grande, acordando barulhos ensurdecedores, de fantasticos ferros a se chocarem, sopros gigantescos, estalos enormes e suffocadora fumaça.
— Mamãe... mamãe! Chamou o menino com indizivel angustia.
E ella, inclinando-se toda sobre o malsinado, como que a defendel-o de mysterioso inimigo, a chorar, o acalentava, qual creancinha de berço.
Ia então desembocando em offuscadora claridade a locomotiva, triumphante e a apitar estridente e galhofeira.
— Como é boa a luz, como é boa! Exclamou Alberto erguendo nervosamente a cabeça e com ar de verdadeira exultação. Pensei que ia morrer. A morte deve ser assim; um tunnel, do qual a gente não sai mais nunca, comprido, comprido e tão escuro, Santo Deus!... E onde a boa mamãe para animar o filhinho... só, abandonado!...
Não sei por que, julguei dever intervir, como que desvendar consoladora clareira ás negras idéas d’aquelle menino tão combalido e ameaçado.
— Não, Alberto, repliquei com involuntaria gravidade e imposição, na morte há tambem muita luz, muita esperança, muito céo, o verdadeiro céo, sempre azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos esperam a alma, como a vida não as póde dar...O tunnel acaba logo... começa depois sem demora a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores... Ilimitada é a bondade do immenso Creador!
E estaquei, vexado do que acabara de expender na vivacidade espontanea daquella especie de preleção tão descabida.
Mostrára Alberto certa sorpreza ao ouvir essas palavras, e, encarando-me muito sério, respondeu com resignado desalento.
— Póde ser, póde bem ser... mas eu não quero ainda morrer!...
E retrahiu-se ao silencio. De vez em quando tiritava, encolhendo-se todo e a bater os queixos. Buscava, porém, cauteloso, dominar manifestações que impressionassem mais os paes, attentos ao menor symptoma de aggravação, tão attentos quanto impotentes e vencidos; pobres, pobres paes!
Passada a estação de Belém, já noite escura, observou a mãi, para dizer qualquer cousa, que o trem não parava mais senão no Rio, no campo da Acclamação.
Contrariou-a Alberto com inesperada alacridade e, nos olhos subitamente accesos, pareceu Ter singular prazer em assentar incontestavel verdade:
— Não, senhora; pára ainda em Cascadura.
E como suscitasse duvida o que affirmava, eu mesmo opinando contra elle, mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a sua asseveração.
— Você não se lembra, José, que o trem de São Paulo costuma parar em Cascadura? Perguntou para o molecóte, levantando-se a meio.
— Iô, nhonhô? Respondeu o pagemsinho todo assarapantado, iô, não... ué!
E tal a figura atrapalhada do negrinho pela obrigação de interpôr juizo no debate, que não pudemos, todos nós, deixar de sorrir.
— Que tolinho! Exclamou Alberto.
E deu uma risadinha gostosa. Depois cahiu novamente em comatoso abatimento.
E, á luz vacillante, cheia de vaivens, quasi sinistra das fumosas lampadas, o iamos observando, cada qual entregue a penosas meditações que se concentravam, em doloroso accôrdo, n’um ponto único.
Identificado, como se fosse velho amigo, ou, mais ainda, parente chegado d’essa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome ignorava e nem sequer procurava saber, soffria com elles n’uma contensão dura, cruciante, numa affinidade affectiva de maior intensidade e violencia.
Que viagem interminavel! Que hora aquella! Tudo tão sombrio em torno de nós! Cessara a chuva; mas as trevas humidas, gottejantes, se condensavam carrancudas, caliginosas, como que palpaveis. E a cada estação eram apitos e assobios de perfurarem os ouvidos, ou então clamores angustiosos e um bater de sino melancolico, lugubre, a dobrar finados.
— Ainda por cima este agouro, murmurou uma das creadas num como muchôcho.
Em Cascadura parou, com effeito, o expresso, e um trem de suburbios com elle cruzou n’um estrondear ensurdecedor de fragorosos gritos, uivos e sibillos, como que a annunciarem pavoroso e iremediavel desastre, choques horriveis, encontro medonho.
— Boy, boy, clamou a mãi simulando certo jubilo, você é que tinha razão! Olha...
— Nhonhô, nhonhô, avisou por seu turno o molecóte achegando-se e puxando de leve o doentinho por um braço, tá hi Cascadura.
Conservou-se Alberto inerte, indifferente, suspirou apenas com mais força.
— O tunnel... o tunnel... Depois vem luz e céo... Bem me disse o homem...
— Não será bom vêr o thermometro? Propoz a mãi com respiração cortada, offegante.
— Não, mamãe, pelo amor de Deus, poude ainda implorar o pequeno.
Já ahi entraramos na zona dos suburbios e os lampeões de gaz, cada vez mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As estações todas illuminadas, cheias de borborinho e animação populares. Numa d’ellas tocava uma banda de musica saltitante peça e o contraste d’esses allegres compassos mais me apertou o coração.
Revoltava-se, comtudo, o meu egoísmo. Que necessidade essa de me associar a todo aquelle drama intimo, que me trazia tão consternado enquanto me abalava o systema nervoso? Por que não mudava de logar, não procurava outro qualquer vagão? Afinal, não era aquillo tão comesinho? Não assistira a tantos episodios de agonia e morte? Mais uma criança que desapparecia no barathro insondavel... para dar razão ás estatisticas. Que importancia no desenrolar geral da existencia? Gotta d’agua pura e crystalina a cahir no abysmo... Não era, mesmo por isto, um afortunado da sorte? Sahia da vida sem as miserias e desillusões que a vão assaltando... limpo de toda a poeira e lama...
Procurava distrahir o espirito; mas ahi se me prenderam as vistas insistentes, teimosas, hypnotisadas aos olhos então largamente abertos de Alberto, não mais desassocegados e em tresvario, mas num movimento lento de oscillação, como que destacados das orbitas a se mexerem um tanto ao acaso. De quando em quando parecia que se sumião, cahidos, sem mais apoio, dentro do craneo vasio, oco. E me diziam, assim mesmo, tanta cousa, me falavam de tantos mysterios, me interpellavam com tamanha anciedade!...
Interrogavam supplices, meigos, quem, em boa hora, lhe déra do mundo de além idéa outra, que não de simples terror e aniquilamento para sempre, n’aquelle instante tão proximo da suprema partida.
Sim, devéras, lá, fóra d’aqui, tambem sóes, tambem flores, esperanças, carinhos? Tambem o aconchego doce, protector de entes bons, superiores, compassivos? Palavra?! Podia confiar? Não o quizera enganar... A leval-o d’alli a pouco, longe, longe, pela immensidade na desconhecida viagem, o regaço de algum anjo, faria vezes da estremecida mãi? Para que, porém, deixal-a? Para que despedaçar o coração d’aquelles fulminados pais? Amavam-n’o tanto, tanto!
Quem incutira, porém, a esse homem desconhecido o poder de saber quanto se passava da outra banda da vida? Talvez fosse um d’esses anjos destinados a carregal-o, não era?... Ah! o disfarce mostrava-se bem claro! Por que, porém, não se deixava enternecer? Não via a pungente dôr dos que o cercavam? Pedisse a Deus misericordia... consentisse-lhe o viver... A ninguem, nunca fizera mal algum... Promettia tudo... não por elle, mas pelos paes... Passaria os annos a estudar, a dispensar o bem, o amor, a pagar a divida solemne de interminavel gratidão! Senta quieto, reflectido, honesto, caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...amigo dos humildes, dos mendigos e desgraçados!... Mas tivesse pressa... do contrario não o acharia mais na terra... Bem sentia a morte...sim, a morte...
Passou mais um trem de suburbios com assustador estampido:
Ouvisse, ouvisse!... Ahi vinha ella... Que medo!... E já estava como que sosinho... via-se na cova estreitra com um mundo de terra por cima do seu corpinho tão batido pela molestia!
— Não, não! Havia de Ter coragem... dominava o seu terror, embora bem justo, bem natural!... Creança, saberia morrer como homem... Poderia estar chorando nos braços de pae e mãe, mas para que? Para tortural-os mais? Quem sabe se não haviam de morrer tambem alli! Viessem, viessem para cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria no cemiterio, alvo, consolador com tantos cruzes e anjinho de marmore a rezarem.
Debalde buscava eu fugir à obsessão. Duas vezes me levantei; mas irresistivelmente voltava a conversar com aquelles olhos, cada vez mais resignados, penetrantes e de dolorosa eloquencia, cheios de sorprezas, desconsolos e revoltas, com energia sopitados...
É preciso, é preciso; que fazer?
Bem quizera estar pensando, como menino, em cousas futeis e risonhas e da sua idade, mas tinha por força que cuidar no que há de mais serio e triste, na morte... morte!
E já as pupillas negras, virando de vez em quando, se escondiam sob as arcadas orbiculares, buscando vêr além, para dentro do pobre organismo combalido... E já se fixava, no bater lento das paloebras pesadas, plumbeas, impenetravel, o branco das escleroticas, como alvacento panno cahido de scena finda, acabada...
E os bicos de gaz illuminavam de fóra, intermitantemente, o vagão, como que em fantasmagorica visita, dando repentina luz a todos os recantos ou deixando-o de subito em completa escuridão...
Iamos chegando, e no rostosinho de Alberto se desdobrava o pallor dos ultimos instantes. Desbotava-se a rubidez das faces incendidas e afilava-se, a mais e mais, o nariz correcto, aquilino.
Já a luz electrica chegava até nós.
E o trem estacou com o baque de definitiva parada, salteado pelos carregadores em grita: “Malas, malas! Bagagens! N. 20, n. 53!”
— Leve ao hombro o seu filho, disse eu para o pae, elle está...
E a palavra “expirando” ficou-me atravessada na garganta.
Parado, immovel, os vi partir, a todos. O pae, na frente, com o sagrado fardo, a mãe, tropega, fóra de si, no braço das creadas em soluços, atraz o molecote com cobertores e chales...
E no vagão vazio, como que continuei a fitar aquelles olhos ardentes, indagadores, tão suaves no ingente desespero, na duvida do problema eterno...
Poor boy, alas!