Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/O devanear do cético
Tout corps traîne son ombre et tout esprit son doute.
(V. Hugo.)
Ai da avezinha, que a tormenta um dia
Desgarrára da sombra de seus bosques,
Arrojando-a em desertos desabridos
De bronzeo céo, de fervidas arêas;
Adeja, vôa, paira.... nem um ramo,
Nem uma sombra encontra onde repouse,
E vôa, e vôa ainda, até que o alento
De todo lhe fallece; — colhe as azas,
Cahe na arêa de fogo, arqueja, e morre....
Tal é, minh’alma, o fado teu na terra;
O tufão da descrença desvairou-te
Por desertos sem fim, onde em vão buscas
Um abrigo onde pouses, uma fonte
Onde apagues a sêde que te abrasa!
O’ mortal, porque assim teus olhos cravas
Na abobada do céo? — Queres ver n’ella
Decifrado o mysterio inexcrutavel
Do teu ser, e dos seres que te cercão?
Em vão teu pensamento audaz procura
Arrancar-se das trevas que o circumdão,
E no hardido vôo abalançar-se
A’s regiões da luz e da verdade;
Baldado afan! — no espaço eil-o perdido,
Como astro desgarrado de sua orbita,
Érrando ás tontas na amplidão do vacuo!
Jámais pretendas estender teus vôos
Além do escasso e pallido horizonte
Que mão fatal em torno te ha traçado....
Com barreira de ferro o espaço e o tempo
Em acanhado circulo fechárão
Tua pobre razão: — em vão forcejas
Por transpôr essa meta inexoravel;
Os teus dominios entre a terra e os astros,
Entre o tumulo e o berço estão prescriptos:
Além, que enxergas tu? — o vacuo e o nada!...
Oh! feliz quadra aquella, em que eu dormia
Embalado em meu somno descuidoso
No tranquillo regaço da ignorancia;
Em que minh’alma, como fonte limpida
Dos ventos resguardada em quieto abrigo,
Da fé os raios puros reflectia!
Mas n’um dia fatal encosto á boca
A taça da sciencia; — senti sêde
Inextinguivel a crestar-me os labios;
Traguei-a toda inteira, — mas encontro
Por fim travor de fel; — era veneno,
Que no fundo continha, — era a incerteza!
Oh! desde então o espirito da duvida,
Como abutre sinistro, de continuo
Me paira sobre o espirito, e lhe entorna
Das turvas azas a funerea sombra!
De eterna maldição era bem digno
Quem primeiro tocou com mão sacrilega
Da sciencia na arvore vedada,
E nos legou seus venenosos fructos...
Se o verbo creador pairando um dia
Sobre a face do abysmo, a um só aceno
Evocava do nada a natureza,
E do seio do cháos surgir fazia
A harmonia, a belleza, a luz, a ordem,
Porque deixou o espirito do homem
Sepulto ainda em tão profundas trevas,
A debater-se n’este cháos sombrio,
Onde embryões informes tumultuão,
Inda aguardando a voz que á luz os chame?
Quando, espancando as sombras somnolentas,
Surge a aurora no coche radiante,
Inundando de luz o firmamento,
Entre o rumor dos vivos que despertão,
Levanto a minha voz, e ao sol, que surge,
Pergunto: — Onde está Deos? — ante meus olhos
A noite os véos diaphanos desdobra,
Vertendo sobre a terra almo silencio,
Propicio ao scismador; — então minha alma
Desprende o vôo nos ethereos paramos,
Além dos sóes, dos mundos, dos cometas,
Varando afouta a profundez do espaço,
Anhelando entrever na immensidade
A eterna fonte, d’onde a luz emana....
O’ pallidos fanaes , tremulos cirios,
Que na esphera guiais da noite o carro,
Planetas, que em cadencia harmoniosa
No ether crystallino ides boiando,
Dizei-me — onde está Deos? — sabeis se existe
Um ente, cuja mão eterna e sabia
Vos esparzio pela extensão do vacuo,
Ou do seio do cháos desbrochastes
Por insondavel lei do cego acaso?
Conheceis esse rei, que rege e guia
No espaço infindo vosso errante curso?
Eia, dizei-me, em que regiões ignotas
Se eleva o throno seu inaccessivel?
Mas em vão interrogo os céos e os astros,
Em vão do espaço a immensidão percorro
Do pensamento as azas fatigando!
Em vão; — todo o universo immovel, mudo,
Sorrir parece de meu vão desejo!
Duvida — eis a palavra que eu encontro
Escripta em toda a parte; — ella na terra,
E no livro dos céos vejo gravada,
E’ ella que a harmonia das espheras
Entôa sem cessar a meus ouvidos!
Vinde, ó sábios, alampadas brilhantes,
Que ardestes sobre as aras da sciencia,
Agora desdobrai ante meus olhos
Essas paginas, onde meditando
Em profundo scismar cahir deixastes
De vosso genio as vividas centelhas:
Dai-me o fio subtil, que me conduza
Pelo vosso intrincado labyrintho:
Rasgai-me a venda, que me enubla os olhos,
Guiai meus passos, que embrenhar-me quero
Do raciocinio nas regiões sombrias,
E sorprehender no seio de atras nuvens
O escondido segredo...
Oh! louco intento!...
Em mil vigilias pallejou-me a fronte,
E amorteceu-se o lume de meus olhos
A sondar esse abysmo tenebroso,
Vasto e profundo, em que as mil hypotheses,
Os erros mil, os engenhosos sonhos,
Os confusos systemas se debatem,
Se confundem, se roção, se abalroão,
Em um cháos sem fim turbilhonando:
Attento a lhe escrutar o seio lobrego
Em vão cansei-me; n’esse afan penoso
Uma negra vertigem pouco e pouco
Me enubla a mente, e a deixa desvairada
No escuro abysmo fluctuando incerta!
Philosophia, dom mesquinho e fragil,
Pharol enganador de escasso lume,
Tu só geras um pallido crepusculo,
Onde gyrão fantasmas nebulosos,
Dubias visões, que o espirito desvairão
N’um cháos de interminaveis conjecturas.
Despedaça essas paginas inuteis,
Triste apanagio da fraqueza humana,
Em vez de luz, amontoando sombras
No sanctuario augusto da verdade.
Uma palavra só talvez bastára
P’ra saciar de luz meu pensamento;
Essa ninguem a sabe sobre a terra!..
Só tu, meu Deos, só tu dissipar pódes
A, que os olhos me cerca, escura treva!
O’ tu, que és pai de amor e de piedade,
Que não negas o orvalho á flôr do campo,
Nem o tenue sustento ao vil insecto,
Que de infinda bondade almos thesouros
Com profusão derramas pela terra,
O’ meu Deos, porque negas á minha alma
A luz que é seu alento, e seu conforto?
Porque exilaste a tua creatura
Longe do solio teu, cá n’este valle
De eterna escuridão? — Acaso o homem,
Que é pura emanação da essencia tua,
E que se diz creado á tua imagem,
De adorar-te em ti mesmo não é digno,
De contemplar, gozar tua presença,
De tua gloria no esplendor perenne?
Oh! meu Deos, porque cinges o teu throno
Da impenetravel sombra do mysterio?
Quando da esphera os eixos abalando
Passa no céo entre abrasadas nuvens
Da tempestade o carro fragoroso,
Senhor, é tua colera tremenda
Que brada no trovão, e chove em raios?
E o iris, essa faixa cambiante,
Que cinge o manto azul do firmamento,
Como um laço que prende aos céos a terra,
E’ de tua clemencia annuncio meigo?
E’ tua immensa gloria que resplende
No disco flammejante, que derrama
Luz e calor por toda a natureza?
Dize, ó Senhor, porque a mão occultas,
Que a flux esparge tantas maravilhas?
Dize, ó Senhor, que para mim são mudas
As paginas do livro do universo!....
Mas, ai! que o invoco em vão! elle se esconde
Nos abysmos de sua eternidade.
Um écho só da profundez do vacuo
Pavoroso retumba, e diz — duvída!....
Virá a morte com as mãos geladas
Quebrar um dia esse terrivel sello,
Que a meus olhos esconde tanto arcano?
O’ campa! — atra barreira inexoravel
Entre a vida e a morte levantada!
O’ campa, que mysterios insondaveis
Em teu escuro seio muda encerras?
És tu acaso o portico do Elysio,
Que nos franqueias as regiões sublimes
Onde a luz da verdade eterna brilha?
Ou és do nada a fauce tenebrosa,
Onde a morte p’ra sempre nos arroja
Em um somno sem fim adormecidos!
Oh! quem pudera levantar afouto
Um canto ao menos d’esse véo tremendo
Que encobre a eternidade......
Mas debalde
Interrogo o sepulcro, — e debruçado
Sobre a voragem tetrica e profunda,
Onde as extinctas gerações baquêão,
Inclino o ouvido, a ver se um écho ao menos
Das margens do infinito me responde!
Mas o silencio que nas campas reina,
E’ como o nada, — funebre e profundo......
Se ao menos eu soubesse que co’a vida
Terminarião tantas incertezas,
Embora os olhos meus além da campa,
Em vez de abrir-se para a luz perenne,
Fossem na eterna escuridão do nada
Para sempre apagar-se... — mas quem sabe?
Quem sabe se depois d’esta existencia
Ranascerei — p’ra duvidar ainda?!...