Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/O ermo

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O ERMO


Quæ sint, quæ fuerint, quæ sunt ventura, trahentur.

(Virgilio.)





I.


Ao ermo, ó musa: — além d’aquelles montes,
Que, em vaporoso manto rebuçados,
Avultào lá na extrema do horizonte...
Eia, vamos; — lá onde a natureza
Bella e virgem se mostra aos olhos do homem,
Qual moça indiana, que as ingenuas graças
Em formosa nudez sem arte ostenta!...
Lá onde a solidão ante nós surge,
Magestosa e solemne como um templo,
Em que sob as abobadas sagradas,
Inundadas de luz e de harmonia,

Êxtase santo paira entre perfumes,
E se ouve a voz de Deos. — O’ musa, ao ermo!..

Como é formoso o céo da patria minha!
Que sol brilhante e vivido resplende
Suspenso n’essa cupola serena!
Terra feliz, tu és da natureza
A filha mais mimosa; — ella sorrindo
N’um enlevo de amor te encheu d’encantos,
Das mais donosas galas enfeitou-te;
Belleza e vida te espargio na face,
E em teu seio entornou fecunda seiva!
Oh! paire sempre sobre os teus desertos
Celeste benção; bem fadada sejas
Em teu destino, ó patria; — em ti recobre
A prole de Eva o Eden que perdêra!

II.


Olha: — qual vasto manto que fluctua
Sobre os hombros da terra, ondêa a selva,
E ora surdo murmurio ao céo levanta,
Qual prece humilde, que no ar se perde,
Ora açoutada dos tufões revoltos,

Ruge, sibila, sacudindo a grenha
Qual horrida bacchante: — alli despenha-se
Pelo dorso do monte alva cascata,
Que, de alcantis enormes debruçada,
Em argentea espadana ao longe brilha,
Qual longo véo de neve, que esvoaça,
Pendente aos hombros de formosa virgem,
E já, descendo a colear nos valles,
As plagas fertilisa, e as sombras peja
D’almo frescor, e placidos murmurios...

Alli campinas? roseos horizontes,
Limpidas veias, onde o sol tremula,
Como em dourada escama reflectindo
Floreas balsas, collinas vicejantes,
Toucadas de palmeiras graciosas,
Que em céo limpido e claro balancêão
A coma verde-escura. — Além montanhas,
Eternos cofres d’ouro e pedraria,
Coroados de píncaros rugosos,
Que se embebem no azul do firmamento!
Ou se te apraz, desçamos n’esse valle,
Manso asylo de sombras e mysterio,
Cuja mudez talvez jámais quebrára

Humano passo revolvendo as folhas,
E que nunca escutou mais que os arrulhos
Da casta pomba, e o soluçar da fonte...
Onde se cuida ouvir, entre os suspiros
Da folha que estremece, os ais carpidos
Dos manes do Indiano, que inda chora
O doce Eden que os brancos lhe roubárão!...

Que é feito pois d’essas guerreiras tribus,
Que outr’ora estes desertos animavão?
Onde foi esse povo inquieto e rude,
De bronzea côr, de torva catadura,
Com seus cantos selvaticos de guerra
Restrugindo no fundo dos desertos,
A cujos sons medonhos a panthera
Em seu covil de susto estremecia?
Oh! floresta — que é feito de teus filhos?

Dorme em silencio o écho das montanhas,
Sem que o acorde mais o rude accento
Das guerreiras inubias: — nem nas sombras
Semi-núa, do bosque a ingênua filha
Na preguiçosa rêde se embalança.
Calárão-se para sempre, n’essas grutas

Os propheticos cantos do piága; 1
Nem mais o valle vê esses caudilhos,
Seus cocares na fronte balançando,
Por entre o fumo espesso das fogueiras,
Com sombrio lentor tecer, cantando,
Essas solemnes e sinistras dansas,
Que o festim da vingança precedião......

Por esses ermos não vereis pyramides
Nem marmores, nem bronzes, que assignalem
Nas éras do porvir feitos de gloria;
Da natureza os filhos não sabião
Aos céos erguer soberbos monumentos,
E nem perpetuar do bardo os cantos,
Que celebrão façanhas do guerreiro,
— Esses fanaes, que acende a mão do genio,
E vão no mar infindo das idades
Allumiando as trevas do passado.

Seus insepultos ossos alvejando
Aqui e além nos solitarios campos,
Rotos tacapes, 2 ressequidos craneos,

Que estalão sob os pés de errante gado,
As tabas 3 em ruina, e os mal extinctos
Vestigios das ocáras, 4 onde o sangue
Do vencido corria em largo jorro
Entre as pocemas de feroz vingança,
Eis as reliquias que recordão feitos
Do forte lidador da rude selva.

De virgem mata a susurrante cupola,
Ou gruta escura, disputada ás féras,
Ou fragil taba, n’um momento erguida,
Desfeita no outro dia, erão bastantes
Para abrigar o filho do deserto;
No carcaz bem provido repousavão
De todo o seu porvir as esperanças,
Que suas erão da floresta as aves,
E nem lhes nega o corrego do valle,
Limpido jorro que lhe estanque a sêde.
No sol, fonte de luz e de belleza,
Vião seu Deos, prostrados o adoravão,
Na terra a mãi, que os nutre com seus fructos,
Sua unica lei — na liberdade.

Oh! floresta, que é feito de teus filhos?

Esta mudez profunda dos desertos
Um crime — bem atroz! — nos denuncia.
O exterminio, o captiveiro, a morte
Para sempre varreu de sobre a terra
Essa misera raça, — nem ficou-lhes
Um canto ao menos, onde em paz morressem!
Como cinza, que os euros arrebatão,
Se esvaecêrão, — e do tempo a dextra
Seus nomes mergulhou no esquecimento.

Mas tu, ó musa, que piedosa choras,
Curvada sobre a urna do passado,
Tu, que jámais negaste ao infortunio
Um canto expiatorio, eia, consola
Do pobre Indiano os erradios manes,
E sobre a ingloria cinza dos proscriptos
Com teus cantos ao menos uma lagrima
Faze correr de compaixão tardia.

III.


Eil-o, que vem, de ferro e fogo armado,
Da destruição o genio formidável,
Em sua fatal marcha devastando

O que de mais esplendido e formoso
Alardêa no ermo a natureza;
Que nem sómente o incola das selvas
De seu furor foi victima; — após elle
Rue tambem a cupola virente,
Unico abrigo seu, — sua riqueza.
Esta tremula abobada, que ruge
Por seculares troncos sustentada,
Este silencio mystico, estas sombras,
Que agora me derramão sobre a fronte
Suave inspiração, scismar saudoso,
Vão em breve morrer; — lá vem o escravo,
Brandindo o ferro, que dá morte ás selvas,
E — afanoso —põe peito á impia obra: —
Já o tronco, que os seculos creárão,
Ao som dos cantos do Africano adusto
Geme aos sonoros, compassados golpes,
Que vão nas brenhas resoando ao longe;
Sôa o ultimo golpe, — range o tronco,
O tope excelso tremulo vacilla,
E desabando com gemido horrendo
Restruge qual trovão de monte em monte
Nas solidões profundas reboando.
Assim vão baqueando uma após outra

Da floresta as columnas venerandas;
E todas essas cupolas immensas,
Que inda ha pouco no céo balanceando,
A sanha dos tufões desafiavão,
Ahi jazem, como ossadas de gigantes,
Que n’um dia de cólera prostrára
O raio do Senhor.

                  Oh! mais terrivel
Que o raio, que o diluvio, o rubro incendio
Vem consummar essa obra deploravel......
Qual hydra formidavel, no ar exalça
A crista sanguinosa, sacudindo
Com medonho rugido as igneas azas,
E negros turbilhões de fumo ardente
Das abrasadas fauces vomitando,
Em horrido negrume os céos sepulta......
Estala, ruge, silva, devorando
Da floresta os cadaveres gigantes;
Voão sem tino as aves assustadas
No ar soltando pios lamentosos,
E as féras, em tropel timidas correm,
A se embrenhar no fundo dos desertos,

Onde vão demandar nova guarida.......
Tudo é cinza e ruina: — adeos, ó sombra,
Adeos, murmurio, que embalou meus sonhos,
Adeos, sonoro fremito das auras,
Susurros, queixas, suspirosos échos,
Da solidão mysterioso encanto!
Adeos! — Em vão a pomba esvoaçando
Procura um ramo em que fabrique o ninho;
Em vão suspira o viajor cansado
Por uma sombra, onde repouse os membros
Repassados do ardor do sol a pino!
Tudo é cinza e ruina, — tudo é morto!!

E tu, ó musa, que amas o deserto,
E das caladas sombras o mysterio,
Que folgas de embalar-te aos sons aereos
D’almas canções, que a solidão murmura,
Que amas a creação, qual Deos formou-a,
— Sublime e bella — vem sentar-te, ó musa,
Sobre estas ruinas, vem chorar sobre ellas.
Chora com a avezinha, a quem roubárão
O ninho seu querido, e com teus cantos
Procura adormecer o ferreo braço

Do improvido colono, que semêa
Sómente estragos n’este chão fecundo!

IV.


Mas, não te queixes, musa; — são decretos
Da eterna providencia irrevogaveis!
Deixa passar destruição e morte
N’essas risonhas e fecundas plagas,
Como charrua, que revolve a terra,
Onde germinão do porvir os fructos.
O homem fraco ainda, e que hoje a custo,
Da creação a obra mutilando,
Sem nada produzir destrue apenas,
Amanhã creará; sua mão potente,
Que doma e sobrepuja a natureza,
Ha de imprimir um dia fórma nova
Na face d’este solo immenso e bello:
Tempo virá em que n’essa vallada
Onde fluctua a coma da floresta,
Linda cidade surja, branquejando
Como um bando de garças na planicie;
E em lugar d’esse brando rumorejo
Ahi murmurará a voz de um povo;

Essas encostas broncas e sombrias
Serão risonhos parques sumptuosos;
E esses rios, que vão por entre sombras
Ondas caudaes serenos resvalando,
Em vez do tope escuro das florestas,
Reflectiráõ no limpido regaço
Torres, palacios, coruchéos brilhantes,
Zimborios magestosos, e castellos
De bastiões sombrios coroados,
Esses bulcões da guerra, que do seio
Com horrendo fragor raios despejão.
Rasgar-se-hão os serros altaneiros,
Encher-se-hão dos valles os abysmos:
Mil estradas, qual vasto labyrintho,
Cruzar-se-hão por montes e planuras;
Curvar-se-hão os rios sob arcadas
De pontes colossaes; — canaes immensos
Viráõ surcar a face das campinas,
E estes montes verão talvez um dia,
Cheios de assombro, junto ás abas suas
Velejarem os lenhos do oceano!

Sim, ó virgem dos tropicos formosa,
Nua e singela filha da floresta,

Um dia, em vez da simples arasoia, 5
Que mal te encobre o gracioso talhe,
Te envolverás em fluctuantes sedas,
E abandonando o kanitar 6 de plumas,
Que te sombrêa o rosto côr de jambo,
Apanharás em tranças perfumadas
A coma escura, e dos donosos hombros
Finos véos penderáõ. Em vez da rêde,
Em que te embalas da palmeira á sombra,
Repousarás sobre coxins de purpura,
Sob doceis esplendidos. — O’ virgem,
Serás então princeza, — forte e grande,
Temida pelos principes da terra;
E de brilhante aureola cingida
Sobre o mundo alçarás a fronte altiva!
Mas, quando em tua mente revolveres
As memorias das éras que já forão,
Lá quando dentro d’alma despertares
Do passado lembranças quasi extinctas,
Dos bosques teus, de tua rude infancia
     Talvez terás saudade.

Notas do autor[editar]

1 Piagé, Pagé, ou Piága. Sacerdotes, prophetas e medicos entre as tribus selvagens. A palavra parece que significa sabio ou adivinho. Vivião em cavernas solitarias, erão tidos em grande veneração, e tinhão grande influencia nos negocios da paz e da guerra.

2 Tacape. Maça ou clava de madeira, arma de que usavão os indigenas do Brasil.

3 Taba. Cabana dos indigenas.

4 Ocára. Especie de acampamento fortificado, cidadellas, ou fortificações dos mesmos.

5 Arasoia. Cinto ou saiote ornado de plumas.

6 Kanitar. Cocar de plumas.