Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/Prelúdio

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PRELUDIO

N’este alaúde, que a saudade afina,
Apraz-me ás vezes descantar lembranças
    De um tempo mais ditoso;

De um tempo em que entre sonhos de ventura
Minha alma repousava adormecida
    Nos braços da esperança.

Eu amo essas lembranças, como o cysne
Ama seu lago azul, ou como a pomba
    Do bosque as sombras ama.

Eu amo essas lembranças; deixão n’alma
Um que de vago e triste, que mitiga
    Da vida os amargores.

Assim de um bello dia, que esvaío-se,
Longo tempo nas margens do occidente
    Repousa a luz saudosa.

Eu amo essas lembranças; são grinaldas
Que o prazer desfolhou, murchas reliquias
    De esplendido festim;

Tristes flôres sem viço! — mas um resto
Inda conservão do suave aroma
    Que outr’ora enfeitiçou-nos.

Quando o presente corre arido e triste,
E no céo do porvir pairão sinistras
    As nuvens da incerteza,

Só no passado doce abrigo achamos
E nos apraz fitar saudosos olhos
    Na senda decorrida;

Assim de novo um pouco se respira
Uma aura das venturas já fruidas,
    Assim revive ainda

O coração que angustias já murchárão,
Bem como a flôr ceiada em vasos d’agua
    Revive alguns instantes.