Primeiro Féretro - Ana
Alma de colegial que se fizesse, de repente, irmã de caridade. Ah! essa era, com efeito, irmã da minha vida e tinha caridade de mim. Fazia meditar num destes seres obscuros que morrem sem nunca ninguém lhes penetrar o segredo.
Ela mesmo morreu como uma tarde elisea vagueada de pássaros: —no outono da castidade, intacta natureza que o Nada devorou sem piedade, reclusa e triste, só, no ascetério da sua fé, penitente da carne, monja sem mancha.
Parece-me ainda vê-la no féretro, a fronte lívida, que os longos e meigos, fagueiros cabelos aureolavam. Era como se um cortejo de águias, em alas, a levasse pelo Azul, enquanto o seu alvo corpo em flor e gelado ia virginalmente, para sempre, dormindo...
Parece-me ver no seu olhar se refletir ainda, talvez do fundo claro da Eternidade, este pensamento cândido; ó inocente alegria da Infância, graça cor-de-rosa e ingênua dos tempos, para onde te exilaste? Eram olhos, os seus, onde vagava a harmonia cantante dos claros rios, e a frescura dessa ingênita bondade que floresce instintivamente e espontaneamente nas almas, como as estrelas no céu, apesar das tentações malignas, das apostasias do Bem, dos sacrilégios do Amor. Olhos onde havia bizarro e cintilante alvoroço alegre de mocidade, qualquer cousa de farfalhante ruflar d'asas por entre festões de flores, sonoridades de cristais e luzes.
Como, pois, aquela forma de tanta suavidade e de tanto encanto evaporou-se logo?! Como, pois, aquele ser, tão oculto da terra, tão obscuro, tão humilde, zero inútil no grande algarismo do Mundo, mas tão simples e tão bom, assim desapareceu um dia, arrebatado num vento macabro, convulsivo, de morte?! Como as essências desconhecidas, os filtros esquisitos daquela triste dor nunca foram descobertos? Como os abafados soluços daquela pobre Mágoa nunca foram ouvidos?!
Pois que Deus é esse que faz vigorar nos centros do rumor e da luz, como amplas e verdejantes árvores célebres, existências medíocres que pompeiam e fazem ressoar com vaidoso estrondo a sua prepotência vazia, enquanto aniquila, abate existências onde há um sonho bom de amor e de carinho! Pois que Deus é esse! Que divina misericórdia e que clemência iguais ele, cego, tão cego, semeia na terra, que todos, bons ou maus, colhem o mesmo imutável quinhão?!
Que celeste ironia, acaso, dá-lhe asas satânicas, dá-lhe asas ferozes de fogo, que ele, cego, tão cego, tudo por igual incendeia e em toda a parte cospe lesto a peste?!
Quando Ana morreu eu senti, tal foi o impressionativo abalo, como que uma espada varar-me, lado a lado, o coração.
Eu estava num desses períodos que as reminiscências para sempre conservam, que se não apagam nunca mais no íntimo sadio das nossas fibras, das partículas mínimas do nosso sangue, da espontânea florescência casta do nosso ser. Eu estava na mocidade, na plena e na fortalecente mocidade. Desabrochavam em mim perigosas e viçosas flores de delírio juvenil. Eu aspirava o Vago, o Turbilhão das Quimeras. Palácios de fadas eram as minhas noites. Palácios de fadas eram os meus dias. Uma saúde vital dava-me aços de intrepidez, envergaduras ousadas, fantasia e força e frescura matinal de montanhês que vai galgando montanhas por alvoradas de ouro e aves.
Na paisagem da minha Imaginação só havia cânticos e uma brancura purificadora envolvia as cousas na calma de leve e ingênua felicidade ridente.
Ana foi para mim como uma harpa que deixou, de repente, de soar...
Ela era, com efeito, a harpa delicada onde eu, adolescente e sem saber como, tirava as harmonias, os sentimentos rítmicos que guardei comigo e que agora aqui vou aos poucos difundindo.
Ela era a harpa em cujas cordas sensibilizadas eu sempre adivinhei os acordes místicos e fugitivos de um segredo amargo.
Aquela candidez de virgem tinha luto, aquela madrugada de mulher tinha insônias.
Um meio-dia de sol, onde, por um etéreo capricho fenomenal dos astros, se entrecruzasse, transfiguradamente, o crepúsculo.
Desde que Ana morreu começou a cair na minh'alma uma cinza fria de desolação, uma sombra dolente.
Ela foi quem primeiro me ergueu a fronte e as mãos para os sublimes Sacrifícios. Foi ela quem primeiro me ungiu com os seus cuidados cordiais. Foi ela quem me deu a comungar a hóstia da Vida com as suas mãos de amor. Ela arejou a minh'alma, deu sol ao meu Desconhecido, deu luar de paz ao meu Sonho.
Vibrações virgens de harpa inviolada para o mundo, as emoções da alma de Ana faziam meditar no mesmo vago e no mesmo encanto longínquo de regiões ainda não descobertas. Nela dir-se-ia dormir uma vida nova, que, ai! nunca despertou e afinal envelheceu no mistério daquele organismo.
Delicadezas de sensibilidade que nunca transbordam no mundo, tímidas lágrimas reconcentradas que nunca enchem os oceanos!
Com a morte de Ana foi se diluindo a minha sensibilidade, começou de leve, lento, a harmonia velada do meu ser, veio vindo, se difundindo e definindo a Dolência.
Era um fio imperceptível da minha vida, ligado à vida dela, que se partira e que só se tornaria a reunir, talvez, mais tarde, nos reinos encantados e noturnos da Saudade, perto dos rios roxos do Esquecimento, às margens amargas da Ilusão.
Ana fora uma espécie dessas crepusculares, outoniças flores nostálgicas, de desconsoladas perpétuas do celibato que as insônias aquebrantadoras e perigosas definham e crestam como mormaços venenosos.
Fazia lembrar uma dessas donzelas de honor, insontes e peregrinas; seres para os quais a Dor torna-se de alguma sorte um vinho selvagem e alucinante que embriaga, iluminando de certa forma, e cujas religiosas surpresas e revelações da alma estão para sempre veladas e veladas a muitas almas profanas.
E lá, nos reinos encantados e noturnos da Saudade, essa, para mim veneranda e magnânima Criatura — coração, sem dúvida, inquieto, mas parecendo alheio às seduções do mundo e que, quem sabe!, falhou ao seu Destino, lá estará nos parques solitários da Melancolia, no renunciamento de tudo e na indiferença augusta e clássica, nessa doce expressão de beleza de certas estátuas antigas, envelhecidas pelo tempo e tristes, que se vêem através de grandes jardins enevoados...