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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

O que importa, considerando esses registros, é constatar que, exteriormente ao Enūma eliš, existe uma tradição da genealogia de Ánu que inclui Láhmu e Láhamu, provavelmente como o segundo par da lista, ou seja, como uma espécie de intermediário entre uma era primordial e as eras subsequentes. Para a construção de sua teogonia sui generis tudo leva a crer que o autor do Enūma eliš tenha considerado ou mesmo partido desse tipo de tradição. Conforme George, "considerando a cultura e capacidade intelectual do poeta, é possível que ele tenha selecionado Láhmu e Láhamu dentre as antigas divindades ancestrais não aleatoriamente, mas como o par que garantia mais potencial para múltiplas explicações" (GEORGE, 2016, p. 21).

Sobre a natureza de Láhmu e Láhamu, Jacobsen propôs que, considerando-se a raiz semítica lḫm, 'lama', registrada nos termos acádios luḫummû/luḫmû, 'lodo', 'lama', os dois primeiros deuses nascidos dos protodeuses, que eram água, corresponderiam à primeira formação de uma substância telúrica (cf. JACOBSEN, 1976, p. 169). Heimpel, por seu lado, defende que se trata de monstros marinhos de forma bovina, os quais representariam um estado intermediário entre as águas primordiais e os deuses antropomórficos (HEIMPEL, 1998; cf. também GABRIEL, 2014, p. 119). Na esteira dos nomes e trabalhando com imagens, Wiggermann mostra que o herói com espessa barba e três cachos de cada lado da face, normalmente nu e com uma faixa em torno da cintura é o laḫmu, seu nome estando em acordo com o termo acádio idêntico (laḫmu) cujo significado é 'peludo', negando ele, contudo, que se trate da mesma figura presente não só no Enūma eliš como em outras listas teogônicas (WIGGERMANN, 1981-1982, p. 90-105). Finalmente, Lambert argumenta não só que a hipótese de Jacobsen deve ser descartada, por ser inconsistente com os usos cosmogônicos de Láhmu/Láhamu, como que o laḫmu peludo de Wiggermann é o mesmo das cosmogonias, o seu papel nelas sendo o de prover a separação entre o céu e a terra, ou seja, trata-se de espécies de Atlantes que, tendo os pés agarrados no chão, sustentam com os braços o teto que é o céu (LAMBERT, 1985).

O argumento principal de Lambert é a relação de laḫmu com pilares do batente de portas (em sumério, 'dubla'), especialmente de — sabendo-se que templos se entendem como representação do