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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

uma espécie de nova tríade divina sui generis, Anshar-Ánu-Ea, em que a precedência cabe ao primeiro, os dois outros agindo como auxiliares.


Ea é o nome acádio do sumério Enki, cuja principal característica é a relação com o 'abzu' (Apsu), onde habita. Ele é também chamado de Ninshiku ou Nudímmud, este último composto dos termos sumérios 'dím' (criar) e 'mud' ('trazer diante'), "relacionado com seu papel posterior de criador da humanidade" (GABRIEL, 2014, p. 119). Trata-se, portanto, de um deus subterrâneo, associado com sabedoria, magia, encantamentos, além de com as artes e requintes da civilização (conforme já o definia Deimel, em 1914: "É-a, deus abyssi et aquae (dulcis?); deus sapientiae et artium; deus magorum"). O centro de seu culto é o E-abzu ('Casa de Apsu') em Eridu, em que se encontram indícios de culto a um deus ctônico desde a mais remota pré-história (cf. ESPAK, 2006, cap. 2).

No poema sumério conhecido como Inana e Enki, dentre aquilo que o deus coloca na barca da deusa, para que ela transporte de Eridu para Úruk, encontram-se poderes (em sumério, 'me') tão variados quanto os ligados ao culto divino, à música, à arquitetura, à metalurgia, à guerra e ao sexo (comentários em BRANDÃO, 2019, p. 49-55).

É provavelmente por sua relação com a vida civilizada que Ea se apresenta não só como favorável aos homens, mas como o criador da própria humanidade: no poema conhecido como Atraḫasīs (Supersábio), é Ea quem propõe aos deuses a criação dos homens, para assumir os trabalhos dos İgigi, instruindo Mámi, a deusa-mãe, sobre como fazê-lo (cf. Atraḫasīs 1, 206 ss.). No mesmo poema, é a partir dos conselhos astutos de Ea que o Supersábio consegue superar os flagelos enviados pelos deuses (uma peste, uma seca e, finalmente, o dilúvio), impedindo a extinção completa da humanidade. A forma como age põe em relevo sua astúcia, que atinge o máximo por ocasião do dilúvio, episódio retomado também na tabuinha 11 de Ele que o abismo viu: estando sob o juramento que o impedia de alertar Atrahasis/Uta-napíshti sobre a iminência da enchente, Ea dirige-se não diretamente a seu protegido, mas a uma cerca de caniços: "O príncipe Ea com eles sob jura estava,/ Mas suas palavras repetiu à cerca de caniços: /Cerca! cerca! parede! parede!/ Cerca, escuta! parede, resguarda!/ Homem de Shurúppak, filho de Ubara-Tútu,/ Derruba