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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

extenuado atordoava-se". Antes, ele havia sido chamado de sukkalu ('intendente', 'administrador'), agora se diz ser o tamlāku (conselheiro', 'mentor') do deus, o que ressalta sua responsabilidade na trama.


É habilidosa a forma como o narrador entretece o que diz respeito a um e outro deus neste ponto culminante da saga: após três versos relativos a Apsu, intercala ele um verso sobre Múmmu; de novo, mais três versos sobre Apsu, seguidos por um relativo a Múmmu; enfim, um verso sobre o destino final de Apsu, mais um sobre a sorte final de Múmmu:


E recitou-o, nas águas o fez repousar,
Sono nele inseminou, dormiu ele em paz,
E fez dormir Apsu do sono nele inseminado.
(Múmmu, o mentor, extenuado atordoava-se.)
Desatou-lhe os tendões, arrebatou-lhe a coroa,
Sua aura tirou, em si revestiu-a,
E encadeou Apsu, matou-o.
(Prendeu Múmmu, sobre ele pôs a tranca.)
Firmou sobre o Apsu sua morada.
(Capturou Múmmu, reteve-lhe a brida.)


Esse recurso paralelístico tem um efeito rítmico notável e, por sua extrema precisão, realça a importância desta passagem (para reproduzi-lo de algum modo na tradução, pus o que diz respeito a Múmmu entre parênteses, já que se trata também, na distribuição da atenção que se dá a cada personagem, de apresentar o papel de Apsu como dominante). A comparação com a derrota de Tiámat por Márduk, na tabuinha 4, demonstra que não se trata de um esquema narrativo aleatório. Como aqui, também naquele caso demora-se nas ações cumpridas por Márduk contra a deusa (depois de lançar-lhe dentro os ventos, "ele atirou uma flecha, rasgou suas entranhas,/ Seu interior cortou, retalhou-lhe o coração./ Encadeou-a então, sua vida exterminou:/ Seu cadáver lançou, sobre ela ergueu-se", 4, 100-104), para em seguida prestar atenção no que acontece com seu séquito ("E os deuses, seus aliados, que iam a seu flanco,/ Tremeram, amedrontaram-se, voltaram atrás./ Saíram e sua vida salvaram./ Cerco os envolvia, fugir não podiam./ Capturou-os ele e suas armas quebrou...", v. 4, 106-111).