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Qual dos dois?/IX

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O casamento é a perfeita união de duas existências; e mais do que a união, é a fusão completa e absoluta. Se o casamento não é isto, é um encontro fortuito de hospedaria; apeiam-se à mesma porta, escolhem o mesmo aposento, comem à mesma mesa, nem mais, nem menos.

Este é o casamento mais comum. O outro, o legítimo, o raro, esse é outra coisa que não isto. A religião santifica o casamento, mas supõe sempre a existência anterior de um elo tão sagrado como o do altar.

Não se parecia com este o casamento de Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao coração: primeiramente por interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espécie de passeio ao Corcovado. Ora, todos são de acordo que do Corcovado se goza uma vista magnífica, mas a ninguém lembrou ainda a idéia de lá fundar uma cidade. Ninguém lá fica; sobe-se, goza-se, desce-se.

Valadares começava a sentir a necessidade de descer do Corcovado; a idéia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro pesadelo que lhe sufocava o espírito. Verdade é que a sua liberdade não estava tolhida; os boudoirs célebres que freqüentara outrora começaram a festejar a volta do filho pródigo. Mas era sempre um vínculo, o pobre já sentia que este o apertava. Podia ser de rosas; mas achou-o de ferro.

Amélia casara com Valadares como casaria com outro qualquer; simples mudança de estado. Comprou a liberdade sob a forma de uma prisão. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a pé; e um protetor para abrigar a sua existência, a sua reputação. Com estas condições, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais à mão foi o escolhido.

Imaginem já por aqui qual era a alegria conjugal daquelas duas criaturas.

Não tardou que o aborrecimento viesse sentar-se no lugar que o amor não ocupava; em vez de dois entes unidos por um grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta, com a diferença que a comunhão do infortúnio e do crime estabelece certa simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares e a filha de Seabra.

Começava a dissolver-se a forma conjugal; não se precisava ser águia para adivinhar que, dentro de pouco tempo, a casa liquidaria e os dois achariam na separação um remédio aos seus males.

Ora, este espetáculo e esta previsão desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse acima. Um dia de manhã, resolveu mudar-se, e assim o declarou aos donos da casa.

— Mudar-se? exclamou Amélia. E por quê?

— Porque devo morar só; além disso, está com o meu gênio.

— Se assim é, observou Valadares, não te obrigo ao contrário. Mas hás de vir jantar comigo todos os dias...

— Todos os dias, não sei, respondeu Daniel.

— Já tem casa? perguntou Amélia.

— O meu procurador, respondeu Daniel, disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos.

— Ah!

A mulher de Valadares sorriu maliciosamente; o marido, por imitação, sorriu também.

Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe compreender.

— Mas que tem isso? perguntou ele.

— Nada, acudiu Amélia, quer dizer que está mais perto.

— De quem?

— Ora de quem! dela!

— Não conheço!

— Augusta.

— Ora!

Daniel respondeu com uma expressão que simulava indiferença; mas, se devo confessar a verdade, não o era. Quando o procurador lhe trouxe a notícia de que havia casa na Rua de Mata-cavalos, o rapaz estimou a notícia e aceitou a casa.

— O fato é, disse Amélia, que ela pensa no senhor.

— Em mim?

— Cuido que sim, porque há dias, indo eu lá, duas vezes me perguntou se estava bom. Quando me perguntou a segunda vez sorri, como há pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era um protesto aparente.

Daniel ouviu atento as palavras de Amélia.

— E que não fosse! disse ele; como eu não vou para lá por causa dela...

— Creio, respondeu Amélia, mas o fogo ao pé da pólvora...

— Eu não sou pólvora, nem fogo...

A conversa ficou aqui. Daniel, daí a dias, estava completamente mudado.

A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma janela; e ele a viu no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito ou expressivo? Não sabia.