Qual dos dois?/VI
Despontava-lhe já uma espécie de ódio contra Augusta. Seria esse o caminho do amor?
Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano, na casa de Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala a dentro a mulher de Valadares.
Começava a moça a usar da liberdade que procurara no casamento.
— Tua mãe? perguntou ela a Augusta, depois dos primeiros beijos.
— Está lá dentro; vou mandá-la chamar.
— Creio que o moleque já lhe foi dizer que eu estava aqui.
— Anda sentar-te.
Amélia sentou-se e disse sorrindo para Augusta:
— Não me perguntas por meu marido?
— Ia fazê-lo.
— Está na repartição. A primeira coisa em que concordamos, é que eu saísse a passeio quando me parecesse. Eu não sou criança para andar agarrada a meu marido. Na Europa, não se usa isso. Demais, tenho toda a confiança nele. Acho-te pálida hoje...
— Dormi pouco.
— Alguma preocupação?
— Uma enxaqueca.
— Que calor!
— Com efeito, o dia está quente.
Amélia agitou o leque lançando pelos móveis da casa esse olhar de curiosidade indiscreto que tanta gente emprega numa casa onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem-par.
Augusta olhava para ela sorrindo.
Nesse momento, entrou Madalena.
— Já de passeio! disse ela, beijando a mulher de Valadares.
— Não é cedo.
— Seu marido está bom?
— Está.
— São felizes, creio.
— Completamente. Ah! o casamento foi a melhor invenção deste mundo. Por que razão não casa sua filha?
— Porque não encontrou noivo.
— Isso é fácil.
— Não tanto, acudiu Augusta; além de que não tenho pressa.
— Pois quanto mais cedo melhor, disse Amélia.
— Augusta, disse Madalena, terá um noivo quando quiser. Agora mesmo...
— Ah! algum apaixonado?...
Augusta levantou-se e foi buscar o lenço ao piano.
— Não falemos nisso, disse ela.
Amélia levantou-se também.
— Já se vai? perguntou Madalena.
— Já; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer D. Augusta ir comigo?
— Não posso.
— Então, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho: não seja cruel.
— Por que não vem tomar chá conosco esta noite? perguntou Augusta.
— Não posso, respondeu a moça, tenho de ir com meu marido visitar o velho Marcos. Conhece, não?
— É aquele homem que me apresentou na noite do seu casamento? perguntou Madalena.
— Justamente; somos parentes. Está muito mal.
— Parecia vender saúde.
— O filho foi lá hoje à nossa casa dar-nos parte da moléstia do pai.
— O Dr. Daniel?
— Sim. Adeus!
Amélia saiu.
Depois do baile, era a primeira vez que Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razão, não pôde ouvi-lo sem algum abalo.
Ficando só na sala, Augusta foi sentar-se ao piano e começou a dedilhar não sei que composição alemã. Mas evidentemente o seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio, acompanhado de Luiz.
Depois da recusa que fora dada na província, era a primeira vez que Luís aceitava um convite de B... para jantar em casa dele. Era um escrúpulo pueril, se querem; mas o moço tinha esse escrúpulo e obedecia-lhe involuntariamente. Mas, como resistir às instâncias do velho? E sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moça?
Quando os dois deputados entraram na sala, Augusta levantara-se do piano.
O jantar foi imediatamente posto na mesa.
Depois do jantar, Luís esteve algum tempo a sós com Augusta. Conversaram de coisas indiferentes. A moça felicitou-o pelos aplausos que lhe deram como orador. Luís recebia-os com um ar de modéstia que não escondia completamente o sentimento de satisfação que lhe dava aquele elogio vindo da boca de Augusta.
Depois, acrescentou:
— Todos esses aplausos têm para mim uma única vantagem: adiantar a minha posição.
— Tem ambição política?
— Não; bem sabe qual é a minha ambição.
A moça ficou séria.
Luís contemplou-a com um sorriso de dor; depois procurou pegar-lhe na mão, que ela retirou apressada, dizendo:
— Perdão! tenho que fazer...
E como desse um passo para fora, Luís adiantou-se e disse-lhe:
— Engana-se, D. Augusta, eu não venho falar-lhe de coisas em que não posso tocar. Queria simplesmente pedir-lhe desculpas se alguma vez a ofendo com alusões a um sentimento de que não tenho culpa.
— Nem eu, creio.
— Voluntariamente, não.
A moça recuou e foi sentar-se.
— Olhe, disse ela; disse-lhe uma vez que podíamos ser bons amigos. Quer assim?
— Aceito, e já é muito; mas creio que me é lícito esperar o seu amor.
— Esperança inútil.
— Inútil? será, mas espero.
Augusta sorriu.
— Ambiciosa, disse consigo Luís.
Mas ao mesmo tempo, como que arrependido desta exclamação interior, o namorado entrou a sorrir para ela, — sorriso de súplica e de contrição.
Augusta não reparou nisso.
No entanto, a tarde caía, e a melancolia da hora servia de fundo àquele quadro já de si tão triste: um coração de fogo ao pé de um coração de rocha, um destino inteiro nas mãos de uma mulher indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de uma mulher.
Uns terão simpatia pela posição de Luiz; outros tédio. Depende dos caracteres. Os altivos julgarão que nenhum homem deve aspirar à mão de uma mulher, quando esta lha recusa. São leis boas para o papel. Quem conhece o coração humano compreende, lastimando embora, essas situações humilhantes em que o amor pode colocar um homem, aliás brioso e digno de si.
Não poucas vezes, Luís discutira consigo mesmo a situação em que se achava, e nunca o seu espírito lavrou uma sentença de abandono que lha não reformasse o coração, juiz em última instância nestas matérias de amor.
Todavia, a cena daquela tarde impressionara singularmente o moço. Pareceu-lhe que a insistência seria já degradação; resolveu lutar e esperar.
Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.
Augusta, quando se achou só, respirou; era evidente que a presença de Luiz a importunava.