Qual dos dois?/XVIII
No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.
A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntese que se dera em sua existência.
A falar verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que se sentiu apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.
Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido a ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.
Ao entrar em casa, não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.
O criado, que o recebeu, deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.
— Mas quem te perguntou por isso? disse Daniel.
— Eu lhe digo, meu amo; é que, de quando em quando, mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava.
— Sim?
— É verdade. E há coisa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.
— Uma carta?
— Sim, senhor; está no seu gabinete.
— Deixa-me ir descalçar as botas.
Noutro tempo, Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.
Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.
Era de Augusta.
Dizia assim:
“Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.
Augusta”.
— Olé! disse Daniel em voz alta; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã veremos a coisa.
E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:
— João, ouviste o que eu disse agora?
— Eu só ouço o que meu amo quiser; respondeu o criado sorrindo maliciosamente.
— Ainda bem. Dá-me de comer.
Daniel comeu tranqüilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.
— Veio alguém procurar-me?
— Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.
— A mim?
— Disse-me isto.
— Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.
O criado saiu.
Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.
— Tudo é natural naquele gênio excêntrico, dizia ele consigo.
Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.
Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.
— Estava ansioso por ver-te, disse ele.
— Aqui estou. Tua mulher?
— Não me fales dela.
— Por quê?
— Quero propor ação de divórcio.
— Eu já contava com isso, disse Daniel tranqüilamente. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...
— Daniel!
— Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer coisas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dois espíritos frívolos.
— E tu, queres passar por um homem grave?
— Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta, são os frívolos; outros um lenço de dois palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.
Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.
— Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.
— É resolução assentada?
— É.
— Então o meu conselho é inútil.
— Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas quando me acusarem.
— Isso não!
— Por quê?
— Não quero intervir em negócios de família.
A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.
— É a tua última palavra? perguntou ele.
— A última.
Seguiu-se a isto um longo silêncio.
Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.
— Como te foste de viagem? perguntou Valadares.
— Bem.
— E quando eu penso que podia ter ido contigo... A propósito, continuou Valadares, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?
— Ah! queria dizer que não podia esperar.
— Mas há certas palavras...
— Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?
— Leu. Ah! se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?
— Conforme, disse Daniel; para quem gosta da corte e da Rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.
— É verdade que se eu fosse perdia muita coisa.
— Sim?
— Coisas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?
— Onde?
— No Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?
— Acho bom.
— Manda fazer um, porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-as, porque vim depressa e é noite. E os padrões?
Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu, prometendo voltar no dia seguinte, a fim de ver se obtinha uma resposta dele.
— Sobre o divórcio ou sobre as calças?
— Uma e outra coisa, disse Valadares descendo a escada.