Quem boa cama faz.../IV
Mal sabia D. Fernanda Tavares a que experiências a destinavam estes dois amigos, e de que maneira nova e romântica o primo se queria desfazer dela.
Que ela gostava do primo era coisa que podia ver quem lhe examinasse os olhos nas ocasiões em que se achavam juntos na casa dele ou na casa dela. Só o bacharel nunca reparara nisso; a mãe dele porém que a amava como filha, e que desde longa data imaginara uma união entre ambos, logo percebeu o que se passava no coração da sobrinha. Não se demorou em comunicá-lo à mãe de Fernanda, que era sua irmã mais moça, e, depois, ao desembargador.
Nenhum caso fez este da descoberta durante os primeiros tempos; mas um dia vendo que o filho não tomava emenda, achou que era azado meio casar os dois primos, e comunicou, como vimos, a resolução ao bacharel. Sua opinião era que o rapaz ia ficar contentíssimo.
Tinha razão de o supor.
Fernanda era realmente bonita. Tinha a cor morena, os olhos negros e naturalmente lânguidos, todas as feições delicadas e corretas. As mãos em que o bacharel nunca reparara, eram obras-primas, e o pé, nas poucas vezes em que se atrevia a transpor a fímbria do vestido, convenceu aos profanos de que além daquilo só se fosse invisível de todo.
Nenhum desses dotes, nem todos juntos, seduziram nunca o coração desocupado do primo Luís. O amor em que ela ardia era silencioso e paciente. Tinha esperança de que mais tarde ou mais cedo viria a triunfar, e com essa esperança vivia e sofria. Uma só palavra de Luís causaria alegria a toda a família — a prima, o pai, a mãe, e a tia; mas essa palavra os lábios dele teimavam em não dizer.
— Esperemos, dizia o coração de Fernanda.
E esperava.
Alguns dias depois da conversa de Luís e Ernesto, foi este apresentado em casa do desembargador Fonseca. Há homens que nunca perdem o gesto e o ar do centro em que vivem. Ernesto não era assim. Numa casa de família era um homem circunspecto e grave. Naquela ocasião esta mudança era essencial; mas não lhe custava, e tudo correu às mil maravilhas. O desembargador ficou encantado com o amigo de Luís; D. Teresa, sua mulher, achou-lhe uma série de boas qualidades que sinceramente julgava perdidas na mocidade. Ernesto foi convidado a considerar aquela casa como sua.
No dia seguinte, Luís veio dizer-lhe que a prima lá estava e que convinha ir nessa noite.
— Não, senhor, disse Ernesto; convém pelo contrário que eu lá não vá. É preciso que teu pai e tua mãe me preparem o terreno.
Efetivamente tanto o desembargador como a mulher não se fartaram de elogiar o amigo de Luís. Tudo lhe achavam: gravidade, instrução, graça, boas maneiras, formosura, e mais um não sei quê que insensivelmente a todos arrastava. A curiosidade de Fernanda e de sua mãe foi naturalmente excitada ao último ponto.
Ernesto voltou à casa do desembargador alguns dias depois, e amiudou as visitas à proporção que a intimidade ia sendo maior. Ao cabo de um mês era quase um amigo velho.
— Prouvera a Deus, dizia consigo o desembargador, que todos os amigos de Luís fossem como este!
Ernesto não deixava ocasião de louvar as qualidades de Luís Fonseca. Referia ao desembargador as discussões que costumava a ter com ele em sua casa, sobre questões de direito e de filosofia.
— Muitas vezes sai de lá às quatro horas, continuava o fiel amigo; moído, é verdade, mas vencedor.
O velho ficava pasmado.
— Ah! dizia ele, se ele só discutisse lá todas as noites!
— Todas as noites seria impossível, tornava Ernesto; mas as discussões são freqüentes. Demais, ele é rapaz e naturalmente diverte-se...
Com estas e outras petas, com o procedimento cauteloso e regrado de Luís, o desembargador foi acreditando que realmente o filho se havia emendado.
Seis semanas depois de assídua freqüência, pôde haver o primeiro encontro entre Ernesto e Fernanda. Tanto haviam falado dele a ela, que a moça ardia por contemplar essa espécie de fênix da mocidade. A impressão foi realmente boa. Ernesto tinha o tato preciso para aparecer aos olhos de Fernanda com as melhores cores e as mais adequadas ao seu intento.
De sua parte a impressão foi magnífica. Achou-lhe uma bela figura, ainda que um ar extremamente frio.
— Não importa, disse ele ao bacharel; a frieza é uma camada de neve, que se pode e se há de derreter. Demais, é sabido que ela arde lá por dentro.
— Mas, olha, que já lá vai mais de um mês, e o tempo voa.
— Descansa. Cuida de ti. Ontem entraste tarde para casa.
— Às onze horas apenas.
— Foi tarde demais.
— Mas então às ave-marias?
— Não, mas às nove. Deves tomar o chá em casa. Sacrifica-te alguns meses para gozares o resto dos teus dias.
— Terrível remédio!
— Mas necessário.
Ernesto advogava sinceramente a causa do companheiro. Não menos sinceramente entrou a cortejar a sobrinha do desembargador, não logo de sopetão, mas a pouco e pouco, como o Jácome amansa cavalos, como os políticos amansam os povos rebeldes.