Quem boa cama faz.../V

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Fernanda gostava da conversação de Ernesto, mas nem se mostrava alegre nem desejosa de o ter ao pé de si. Seus olhos buscavam a miúdo os do primo, que fugiam cautelosamente com o fim sabido de lhe ir matando as esperanças aos poucos. As esperanças porém não morriam assim do pé para a mão. O amor tinha raízes e vinha de longe; não se apaga um incêndio com uma bochecha d’água.

Entendia Luís que era de bom efeito fazer o amigo no espírito da prima algumas insinuações contra ele. Ernesto abanou a cabeça quando ele lhe disse isto.

— Seria estragar tudo, acrescentou Ernesto.

— Estragar?

— Sem dúvida. Dizer mal de ti é aguçar-lhe e multiplicar-lhe a paixão. Tu não conheces o coração das mulheres, Luís. Nada de deitar lenha ao fogo. Luís insistiu; a única resposta do amigo foi dizer-lhe que achara um processo para ele.

— Sim?

— É verdade; o meu padeiro teve uma briga com um vizinho por causa de questões amorosas. Perguntou-me se eu conhecia algum advogado bom. Respondi que conhecia um excelente, em cujas mãos ninguém perdia processo dessa ordem.

— Mas que houve?

— O rival injuriou o padeiro; o padeiro quer tirar vingança judicial.

— Está feito, disse Luís, não será processo muito maçante. Olha, não me dês processos maçantes.

— Pelo contrário, já te livrei de um.

— Ah!

— Um tio meu tem umas velhas questões de terrenos em São Cristóvão, coisa muito complicada e grave. Teve idéia de te dar a demanda; mas eu respondi-lhe que tu andavas muito atarefado. Livrei-te a ti da maçada, e a ele de perder os terrenos.

— Pelintra!

O processo do padeiro foi uma data na casa do desembargador. Luís aproveitou o ensejo para fazer muitas e muitas consultas ao pai, que andava contentíssimo com este renascimento judicial do filho.

Eram já passados mais de dois meses desde a entrevista do desembargador com o bacharel e ainda Ernesto não tinha encetado efetivamente a campanha. Longe de fazer insinuações contrárias ao amigo, elogiava-o muito na presença da moça. Ninguém o elogiava tanto e por isso Fernanda preferia a conversa dele. A princípio fria, Fernanda foi revelando a pouco e pouco brilhantes dotes do espírito e sólidas qualidades do coração. A mosca morta, como lhe chamava o primo, era apenas mosca escondida; rompeu o invólucro e começou a esvoaçar com suma agilidade e graça.

Ernesto tornou-se uma necessidade da casa. Ele sabia jogar todos os jogos, desde o xadrez até às prendas; discutia sobre literatura, andava em dia com as modas, recitava ao piano, conhecia receitas de doces; era uma enciclopédia doméstica e viva. Todos o queriam ao pé de si; e mais ainda que todos a noiva de Luís. Ernesto dividia-se com discrição, mas sempre de maneira que a Fernanda coubesse quinhão maior. Gabava-lhe o rapaz todos os seus dotes naturais, ria-se dos seus ditos, aplaudia as suas observações, e com este sistema foi ganhando terreno incalculável.

Um dia percebeu que Fernanda tinha uma tal ou qual tendência poética. Não se deteve; entrou a falar de luas e boninas.

— Oh! que bela coisa não seria, dizia ele, viver ao pé de um lago, dentro de um castelo que só a imaginação poderia construir, ao lado de quem se ama, livres ambos dos cuidados deste mundo, divorciados da prosa, entre a terra e o céu!

A moça não respondeu; estava embebida a ver o quadro que ele lhe pintava.

Ernesto continuou:

— Não lhe parece que a imaginação é um triste dom do homem?

— Talvez.

— Imaginar impossíveis, ou pelo menos, ambicionar gozos raríssimos na terra é a maior desgraça que o espírito pode conceber. Eu nunca pude compreender Werther; Carlota não me apaixonaria, creio eu. Detesto o que vai terra-a-terra.

Ernesto esquecia-se neste ponto, que ainda na véspera fizera a apologia do arroz com ervilhas e ensinara à mulher do desembargador a melhor maneira de comer costeletas de porco. Mas se ele se esquecia, não menos se esquecia a prima de Luís Fonseca. Quando ele acabou de desenvolver a sua teoria acerca do amor, a moça que olhava justamente para a lua, estando ambos à janela, suspirou e disse:

— Eu tenho às vezes idéias fantásticas. Dizem que há habitantes na lua; se os há, penso que só lá existe a vida tal qual eu a imagino. Se ela é tão bela vista de longe, o que não será, vista de perto?

— Talvez não.

— Oh! não me tire então este sonho!

— Melhor é que lhe tire a reflexão do que a experiência. A lua é a imagem exata da felicidade; formosa de longe, vulgar de perto.

— Quem sabe?

— A astronomia, que nos tira as ilusões. Eu também as tive, e ainda hoje as tenho, mas padeci e padeço.

— Padece?

Ernesto suspirou. A moça que parecia ansiosa por ouvir confidências, talvez para poder fazer as suas, repetiu a pergunta. Ernesto abanou a cabeça.

— Não, disse ele, não falemos mais nisto.

— Prefere então a terra?

— Prefiro o céu. Essas lembranças não eram céu nem terra; mas infernos com todas as suas chamas.

A conversa continuou deste modo entre os dois até que a mãe de Fernanda os veio interromper. Não tinha vontade disso a pobre velha, que já no seu coração dizia ser muito melhor que a filha casasse com Ernesto; mas era tarde e era preciso voltar para casa.